Quartel-general informal do professor, escritor, poeta e compositor Luiz Antonio Simas, o bar Bode Cheiroso, no Maracanã, no Rio, desperta o fascínio do seu mais novo parceiro, o rapper Marcelo D2. Os azulejos na parede, o copo americano de cerveja (que D2, atualmente abstêmio, tem trocado pela água mineral), as imagens de São Jorge e Zé Pelintra... Tudo se liga às memórias de um subúrbio carioca que ele canta agora em “Povo de fé”, samba-rap composto com Simas que chega nessa sexta-feira ao streaming, antecipando seu novo álbum, “Iboru”, programado para 21 de março.
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— O subúrbio é um lugar que eu sempre amei, mas do qual estive muito longe na pandemia. Fiquei dois anos sem atravessar o túnel. Dois anos, isso é quase que uma vida, mano! — empolga-se D2, que hoje também apresenta no Circo Voador o seu mais novo show, Marcelo D2 e um Punhado de Bamba, resultado de um recente mergulho no universo do samba. — A partir de hoje eu quero pedestal para botar o microfone. Acho que o samba é um caminho interessante para minha carreira, para esse lugar que os livros do Simas abriram, esse lugar encantado que é o subúrbio no Rio de Janeiro. Antes, era o samba dançando na festa de rap. Agora vai ser o rap no terreiro do samba!
Memórias
Entre um e outro naco de torresmo, no encontro promovido pelo GLOBO, a dupla foi lembrando de suas conexões com a vizinhança do Bode. A alguns passos dali, na Praça da Bandeira, D2 deu seus primeiros passos artísticos, com o grupo Planet Hemp, no Garage Art Cult. Também na Praça, na Rua Barão de Ubá, Simas tomou certa vez “um porre emocional” com o mestre do samba Wilson Moreira (1936-2018).
— Um dia tive a oportunidade de ir à casa dele para gravar uma entrevista. Mas eu travei diante daquela entidade, comecei a beber para dar aquela destravada e fiquei completamente de porre. Foi emocional, não bebi uma quantidade suficiente para ficar daquele jeito! — explica-se Simas, que nasceu na Tijuca e passou a infância entre Nova Iguaçu (onde “caçava rã, jogava bola e soltava mal pipa”) e Laranjeiras.
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Nascido em São Cristóvão e criado no Andaraí (“que era maneiro pra caramba, eu ia muito ao Maracanã com meu pai”), D2 não se esquece das férias que passou em Padre Miguel, na Zona Oeste.
— Era onde eu tinha mais liberdade, era onde eu ficava na rua até tarde. E lá em Padre Miguel os caras me tiravam de playboy, porque eu morava no Andaraí, esse bairro da “Zona Sul” — diverte-se o rapper, que nasceu em 5 de novembro de 1967 (três dias depois de Simas).
— Mas, como eu nasci prematuro, acho que ele é mais velho que eu! — provoca o escritor.
Apesar das conexões suburbanas, os dois se conheceram somente no fim dos anos 1990, em Laranjeiras, no Bar do Serafim — onde o escritor costumava beber e lugar que o rapper frequentava na época de seu primeiro disco solo, “Eu tiro é onda” (1998).
— Naquela época, eu tinha um estúdio por ali e estava me aproximando do samba — diz. — Comecei a comprar vinil e descobri que o meu caminho na música era o da música brasileira, mais do que o rock, o reggae ou o próprio rap. Nas conversas com o (Marcelo) Yuka e o Chico Science veio essa história de que a gente tinha que fazer uma música regional que fosse universal.
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Leitor de livros de Simas, como “Pedrinhas miudinhas” e “Umbandas” (“esse foi meu começo de iniciação no Ifá, li logo depois que minha mãe faleceu”), D2 só foi se aproximar dele mesmo mais recentemente, por causa das redes sociais (“um repostava o que o outro escrevia”).
— Aí veio a pandemia, fiquei preso em casa. Fui fazer o disco “Assim tocam os meus tambores” (de 2020) e achei que o Simas tinha que estar na parada. Fui atrás dele, e a gente fez uma live em que todo mundo chorou. Ele contou uma história do Ngoma, que dá o tambor, e a gente deu ela para o Criolo ler no disco (na faixa “Tambor, o senhor da alegria”) — conta o rapper, que acabou virando parceiro do escritor de fato ao entregar um refrão, que ele usaria para compor “Povo de fé”.
Autor de livros celebrados sobre a cultura popular carioca, Simas aprendeu a tocar cavaquinho quando era garoto, “mas só para chegar nas rodas de samba”. Adulto, ele tentou estudar o instrumento com mais seriedade, mas só até descobrir que não tinha talento ou disciplina.
— Aí fui fazer História na faculdade, né? — admite ele, que mesmo assim seguiu compondo (sozinho e com parceiros do naipe de Fred Camacho, Moacyr Luz e Pedro Luís) e teve canções gravadas por Maria Rita, Lucio Sanfilippo e Jéssica Ellen.
O Marcelo D2 sambista, Simas diz ter descoberto ao ouvir o disco que o rapper fez, em 2010, cantando o repertório de Bezerra da Silva.
— O samba é o gênero mais flexível da música brasileira — acredita. — Tanto que, quando você fala assim “Ah, o samba do Estácio, aquele samba de raiz...”, o samba do Estácio foi transgressor para cacete!
'Galera que ama o samba mais do que ama si própria'
Pioneiro das fusões de samba e rap desde “Eu tiro é onda”, Marcelo D2 conta que tinha lá seus receios em fazer experiências musicais.
— A Beth (Carvalho) ficava de olho em mim e dizia: “Que porra é essa que você tá fazendo com o samba?” (risos) — conta ele, que agora com o projeto Um Punhado de Bamba reúne grupos variáveis, mas sempre com jovens sambistas, como Eryck Quirino (cuíca), Marcelinho Moreira (percussão) e Samara Líbano (violão de sete cordas). — Essa coisa do samba de não ter uma formação fixa me fascina. Tô a fim de experimentar essa roda. E sem DJ, que é para descaracterizar esse lugar do rap.
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No novo show, D2 relê alguns de seus hits mais próximos do samba (como “Desabafo”), adianta seis músicas do seu novo disco (incluindo “Povo de fé”) e apresenta sambas que gosta de cantar, como “Delegado Chico Palha”, “Zé do Caroço”, “Água de chuva no mar” e “Castelo de um quarto só”, de Vinny Santa Fé, sucesso na voz de Renatinho da Rocinha:
— O “Castelo” me tocou muito nesse momento do rap superostentação. Ele fala: “Não tenho dinheiro, nem carro maneiro/ meu samba me basta, me deixa feliz”.
A noite com Um Punhado de Bambas dá um gostinho do que será “Iboru”, o próximo disco de inéditas de Marcelo D2, nas águas do afro-samba digital. Produzido por Mario Caldato, Nave e Kiko Dinucci (do Metá Metá), o disco traz uma música só de Luiz Antonio Simas, “Pra curar a dor do mundo”, e parcerias do rapper com Márcio Alexandre (cavaquinista do grupo Fundo de Quintal) e com Kiko (que Simas conhece das rodas de samba de São Paulo e da umbanda).
— O Kiko tem uma coisa muito parecida com a minha, ele começou no punk rock. Todo mundo fala do Baden Powell, mas o violão brasileiro dele é de outra escola. Ele é de uma galera que ama o samba mais do que ama si própria — elogia D2, que andou se surpreendendo com suas próprias letras para o novo disco. — Tem umas paradas que eu escrevo e depois fico achando que não tenho essa sabedoria para escrever... Sei lá, deve ser ancestralidade mesmo...