Música
PUBLICIDADE

Por Silvio Essinger — Rio de Janeiro

A quadra na Avenida Monsenhor Félix, na Zona Norte do Rio de Janeiro, é a sede de um dos mais tradicionais blocos do carnaval carioca, fundado em 1967. Mas, para quem foi adolescente e jovem adulto nos anos 1990, Boêmios de Irajá é sinônimo de baile funk. Lá, quase 30 anos atrás, Fábio de Oliveira Cordeiro, 46, pai de dois filhos (um é engenheiro e o outro, tenente do CPOR), deu os seus primeiros passos na vida artística como MC Mascote — nome dado “porque eu era pequeno, magrinho, cabeça de pirulito”. A melhor lembrança que ele tem do Boêmios é a de quando fez a abertura de uma apresentação do astro americano Stevie B.

— Fizemos uns 40 bailes com ele para a (equipe de som) Furacão 2000. Chegava em casa e minha mãe perguntava: “Recebeu?” E eu: “Não!” O último baile foi aqui. Ficamos esperando pra caramba, fecharam a bilheteria... e foram duas bolsas de dinheiro pra cada um! — recorda MC Mascote. — Era muita nota, mano! Depois, fomos ao mercado com a minha mãe e era um carrinho para cada filho. Eu falei: “Pega o que quiser.” Era coisa que a gente nunca tinha comido na vida!

Pioneiro do funk carioca, o MC que despontou com o “Rap da Daniela”, em 1992, é hoje um dos que se reúnem, sob a batuta de Buchecha (MC que fez uma rara passagem bem-sucedida para o pop, ao lado do saudoso parceiro Claudinho), 47, no projeto Os Crias do Funk — uma espécie de Buena Vista Social Club do batidão.

Um dream team dos raps

Buchecha montou o grupo, para lançar faixas inéditas, no ano passado, ao lado de um time de estrelas dos primeiros tempos do funk: Mascote, Danda (da dupla Danda e Tafarel, do “Rap do festival”), André do Alto (ex-André e Fabinho, do “Rap do Alto da Boa Vista”), Sinistro (da dupla Sinistro e Mião, do “Rap do amor”), Bob Rum (do “Rap do Silva”), William do Borel (da dupla William e Duda, do “Rap do Borel”), Amaro (da dupla Suel e Amaro, sucesso com o funk melody “Perdi você”), Mano Teko (metade do Teco e Buzunga, do “Rap da consciência”) e Mano Kacau (do “Rap do sufocador”).

— No começo dos anos 1990, eram muito comuns os festivais, as equipes de som iam em busca de novos artistas, até porque as músicas do baile eram gringas e o público queria vozes brasileiras. Esses eram os caras que me chamaram a atenção, os grandes construtores do funk — acredita Buchecha.

Garotos vindos de diferentes comunidades do Rio de Janeiro, unidos na paixão pelos bailes — que tocavam o Miami Bass, um dos gêneros de música eletrônica dos guetos americanos trazido pelos DJs —, eles começaram a fazer rimas (mais ou menos ingênuas) sobre bases instrumentais estrangeiras, falando sobre suas comunidades e as dificuldades que enfrentavam no dia a dia.

O sucesso nos bailes os levou às rádios, e daí a programas de TV, como o “Xuxa Park”, no qual a apresentadora levou ao Brasil inteiro aquela cena de MCs de favela que cantavam seus irresistíveis raps. Logo, eles foram descobertos pelas gravadoras, como a Som Livre, que lançou a partir de 1995 alguns volumes da popular série “Rap Brasil”, da qual quase todos os MCs reunidos por Buchecha participaram.

Alguns chegaram a lançar álbuns próprios, e poucos conseguiram seguir carreira — mas suas músicas nunca foram esquecidas e serviram de influência para que as gerações subsequentes do funk (em especial a de Anitta e Ludmilla) chegasse para dominar o pop brasileiro.

— O Buchecha já vem há um tempo tentando juntar dois, três MCs para gravar um som, e aí com o processo da produção do filme deles (“Nosso sonho”, cinebiografia de Claudinho e Buchecha, que estreia este ano) reativou a vontade de fazer o projeto — explica Alexandre Ferreira Barcelos, 44, o Mano Teko, que se manteve na música após o sucesso com o funk, como produtor de eventos e de trilhas sonoras. — Ele marcou uma reunião na casa do Kacau e propôs essa construção coletiva desde o momento inicial.

No fim do ano passado, Os Crias do Funk lançaram a primeira faixa, o manifesto “O funk é o poder”. Anteontem, foi a vez de “Batata de Marechal”, que, segundo Buchecha, é uma “homenagem a uma iguaria carioca” (a batata frita servida por uma lanchonete ao ar livre no bairro de Marechal Hermes, cuja fama há muito chegou a outros bairros do Rio de Janeiro).

— Até o (estrelado rapper americano) Snoop Dogg já foi lá conhecer a batata e nós, cariocas, muitas vezes não fomos — lamenta o MC, que agora se prepara para lançar com o projeto a faixa “Calvão de cria”, sobre o “corte-vovô”, raspado na fronte e no alto da cabeça, que o parceiro Claudinho fez certa vez e Xuxa, de zoação, não o deixou cantar no seu programa de TV sem antes raspar a cabeça inteira. — Hoje em dia tem essa moda. Os caras vão no barbeiro e pagam uma grana pra fazer o corte do vovô. A gente tinha que fazer uma música, eu sei quem criou isso!

MCs apostam em nostalgia suburbana, mas com som atual

Buchecha ainda promete apresentar no álbum d’Os Crias do Funk (que já está todo gravado, à espera de uma data de lançamento depois do carnaval) faixas como “Suburbanos” (que fala dos bairros do Rio “esquecidos nas músicas dos grandes poetas desse país”), “Macetinho” (feita para “quem dançava a dança da bundinha e agora curte a dancinha do TikTok”) e “Salu”, sobre um personagem fictício que agitava os bailes (“era um grito que a gente fazia nos anos 90, mas nunca apareceu o tal Salu”).

Num tempo em que muitos dos MCs do funk carioca dos anos 1990 estão sendo redescobertos pela nova geração do trap (entre eles, o próprio Buchecha, que gravou “Gin” com o produtor WC no Beat) e que um dos maiores sucessos da cena atual é o álbum “Baile” (feito pelo rapper FBC e o produtor VHOOR no fim de 2021 para homenagear o passado do batidão), Os Crias do Funk contam com um aliado muito importante: Clauci Júlio Oliveira de Souza, o Ceejay, de 23 anos. Filho de Buchecha (cujo nome de batismo, aliás, é Claucirlei Jovêncio), ele é produtor musical de boa parte das faixas do projeto.

— Peguei muitos elementos das coisas que eu escuto e pus na direção daquilo que eles seguem. As músicas têm essa coisa da saudade, mas com a sonoridade do funk atual — analisa Ceejay.

E Buchecha avisa:

— Modéstia à parte, a gente ainda tem essa poesia (do funk das antigas), ela está dentro de cada um de nós e queremos mostrar isso. O pessoal da nossa faixa etária já não sai mais como antigamente. A gente está atrás desse público do baile retrô, porque o funk continua muito próximo do favelado, da comunidade, ele fala a linguagem do povo.

Buchecha e seu novo grupo, Os Crias do Funk — Foto: Brenno Carvalho/Agência O Globo
Buchecha e seu novo grupo, Os Crias do Funk — Foto: Brenno Carvalho/Agência O Globo

A preocupação de Buchecha em garantir uma segunda chance aos MCs da sua época vai bem além da vontade de que a velha poesia volte ao funk. Vem do fato de que, depois do fim daquela primeira onda do gênero, ele e Mascote foram dos poucos que conseguiram se manter financeiramente com o trabalho de MC. A bem da verdade, a morte desfez algumas das duplas (em 2002, Claudinho morreu num acidente de carro e Suel, numa briga de bar), e outras não prosseguiram por desígnios divinos (Buzunga e Fabinho viraram pastores evangélicos).

Mas há também o caso de outro cria, Moysés Osmar da Silva, 53, o Bob Rum, que se formou em Administração e fez pós-graduação em Marketing Digital para gerenciar a própria carreira. Nessa, ele conseguiu adquirir os direitos autorais do “Rap do Silva” e de outras músicas suas (que estavam registradas com a Furacão 2000), foi tema de um documentário (“Bob Rum – a história de um Silva”, de Marcelo Gularte), promove o Baile do Silva (com MCs da antiga) e corre o país fazendo shows em casamentos.

— É um mercado muito sólido, quase 70% do meu trabalho é voltado para ele. Fecho datas o ano inteiro — gaba-se Bob, que acaba de gravar “A nossa bandeira” (sua homenagem ao funk), com produção de Ricardo Feghali (do Roupa Nova) e participação de Stevie B.

Mais recente Próxima
Mais do Globo

Cidade contabiliza 21 casos desde 2022; prefeitura destaca cuidados necessários

Mpox em Niterói: secretária de Saúde diz que doença está sob controle

Esteve por lá Faisal Bin Khalid, da casa real da Arábia Saudita

Um príncipe árabe se esbaldou na loja da brasileira Granado em Paris

Escolhe o que beber pela qualidade de calorias ou pelo açúcar? Compare a cerveja e o refrigerante

Qual bebida tem mais açúcar: refrigerante ou cerveja?

Ex-jogadores Stephen Gostkowski e Malcolm Butler estiveram em São Paulo no fim de semana e, em entrevista exclusiva ao GLOBO, contaram como foi o contato com os torcedores do país

Lendas dos Patriots se surpreendem com carinho dos brasileiros pela NFL: 'Falamos a língua do futebol americano'

Karen Dunn tem treinado candidatos democratas à Presidência desde 2008, e seus métodos foram descritos por uma de suas 'alunas', Hillary Clinton, como 'amor bruto'

Uma advogada sem medo de dizer verdades duras aos políticos: conheça a preparadora de debates de Kamala Harris

Simples oferta de tecnologia não garante sucesso, mas associada a uma boa estratégia pedagógica, mostra resultados promissores

Escolas desconectadas

O mito do macho promíscuo e da fêmea recatada surgiu de uma especulação de Charles Darwin para explicar a cauda dos pavões

Sexo animal

Cuiabá tem o maior tempo médio de espera, com 197 dias para o paciente ser atendido; e Maceió, o menor, com 7,75 dias

Fila para consulta médica no SUS dura mais de 1 mês em ao menos 13 capitais; tema vira alvo de promessas eleitorais