Esta sexta-feira, a cidade do Rio de Janeiro vive uma rara oportunidade de assistir ao show de um dos seus mais ilustres moradores — aquele que um dos maiores criadores da história do jazz, o trompetista americano Miles Davis (1926-1991), definiu como “o músico mais impressionante do mundo”. Atração do festival de música instrumental brasileira Movimenta, no Vivo Rio, o alagoano Hermeto Pascoal reclama por telefone de casa, em Bangu, da ausência forçada nos palcos cariocas.
— É tanta viagem que, quando o show é no Rio, parece que a gente vai tocar no outro mundo! — admira-se. — A gente quase não toca aqui. Acho isso uma falha muito grande dos produtores.
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E o ano será movimentado para o compositor e multi-instrumentista que completa 87 anos dia 22 de junho no palco do Bourbon Street Music Club, em São Paulo (dois dias depois, estará no festival Sensacional, em Belo Horizonte). No próximo dia 15, ele se apresenta no Bourbon Festival Paraty. E, em maio e junho, passa pelos EUA, onde faz uma série de shows por sete cidades e recebe, em Nova York, o título de doutor honoris causa da Juilliard, prestigiosa escola de artes da qual suas músicas fazem parte do currículo — e onde Miles chegou a estudar brevemente.
— Logo que o Hermeto recebeu a notícia, ele já foi tirar as medidas da beca — conta Fábio Pascoal, filho do artista e percussionista da sua banda. — A gente vai fazer os concertos e volta, porque depois vai para a Europa. Não tem mais como fazer turnês compridas como antes. Agora a gente faz no máximo dez shows e vem embora. Está muito cansativo para ele. O Hermeto não sai mais de casa para nada, mas para tocar o bicho fica animado, acorda cedo, já vai arrumando a mala!
Perto dos filhos
A felicidade do músico em ir aos EUA é total: foi lá que ele começou sua caminhada pelo mundo, nos anos 1970, convidado pelo percussionista Airto Moreira.
— Os músicos gostaram tanto de mim e da minha música que nunca mais me deixaram fora de lá. Mas (naquela época) eu não tinha vontade de sair do Brasil. E não foi por negócio de bairrismo, não, foi por causa dos meus filhos, eu ficava muito tempo sem vê-los. E outra coisa que me fez ficar é que eu já tinha o meu grupo aqui — diz Hermeto.
![O músico Hermeto Pascoal — Foto: Divulgação/Gabriel Quintão](https://s2-oglobo.glbimg.com/_J_WnsXsvKBF8qrPke5KoaT-ocM=/0x0:3025x4537/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2023/J/d/hJHhTdRDy0SwTSsmpKvQ/102546168-sc-o-musico-hermeto-pascoal.jpg)
E ele continua até hoje com esse seu grupo, que o acompanha em todos os shows. Além de Fábio, estão lá hoje o baixista Itiberê Zwarg (integrante desde a primeira formação), o baterista Ajurinã Zwarg (filho de Itiberê), o saxofonista e flautista Jota P. e o pianista André Marques. Do show de hoje, faz parte ainda a flautista, cantora e afilhada de Hermeto Mariana Zwarg (sim, filha do baixista).
— Quando eu nasci, meu pai já estava tocando com ele, vou aos shows desde bebê. Há muitos anos o Hermeto vem me dando partituras, o que me fazia tocar flauta ainda mais... E aí resolvi montar um projeto em que vários flautistas tocavam essas músicas, esse repertório universal — conta ela, que batizou o projeto de “Flauta Universal”. — Por exemplo: ele tem uma música muito bonita, “Pra Astor Piazzolla”, que é muito inspirada num tango mas não é um tango estilizado. É como se o tango tivesse encontrado um músico nordestino com raízes profundas na música brasileira. E aí é aquela misturada, com vários momentos, várias línguas diferentes. O Hermeto trouxe essa lição: você não precisa se prender a estilos, a regras, a estéticas. Vamos dar mais ouvido à intuição!
E Hermeto garante: nos shows, confere total liberdade para seus músicos.
— Só tem que tocar bem os temas. Você pode improvisar, mas no máximo 20 por cento. Oitenta por cento é o que está escrito — informa ele, que até costuma organizar uma lista de temas para as apresentações. — Mas quase nunca uso essa lista. Conforme a gente vai tocando, vou me inspirando e vai tudo mudando, para não ficar com uma música parecida com o que era. Eu tenho um negócio do sentir, sou 100 por cento intuitivo, não tenho essa escola da teoria. Aprendi com a vida, com o tempo. Meu professor foi o Universo.
‘Tudo é som’
Músico para quem “tudo é som” (seja ele tirado de chaleiras, seja de porcos ou até da própria barba), Hermeto diz que, quando está no palco, os espíritos dos músicos e da plateia se entranham.
— Não tem nada melhor que a música, ela é minha religião. Eu não fico com as coisas guardadas na cabeça para fazer, elas vêm ali e eu faço. E o público não decora as músicas para ouvir no show, ele sabe que não vou repetir nada do que fiz. Às vezes, alguém gritava: “Toca ‘O bebê!’” (uma de suas composições mais conhecidas). E eu dizia: “O bebê cresceu!” — diverte-se. — Repetir é desrespeitar Deus! Me assusto, no bom sentido, quando termino de fazer as coisas, porque não me lembro de como me preparei para fazê-las. Com a ajuda do meu Pai do Céu, as músicas vêm em quantidade, com qualidade.
Com os 87 anos (que, admite, “não é uma idadezinha”), Hermeto se diz bem:
— A gente vai ter uma coisa ou outra, mas sou um cara que sempre se cuidou. Eu não bebo nada. Quer dizer, agora eu não bebo nada. Lá entre os 45 e os 50 anos eu dei tchau à bebida, ela começou a me fazer mal. Mas não era nem a ressaca, é que quando terminava de beber eu sentia um monte de coisas doidas. E pensei: “Se a bebida é mais doida do que eu, vou deixar ela pra lá!”