O radialista Adelzon Alves já produzira três LPs de Os Tincoãs (em 1973, 1975 e 1977) e entendia que eles poderiam fazer algo ousado: um disco em que seriam acompanhados de um coro numeroso. O trabalho, batizado “Canto coral afro-brasileiro”, foi realizado em 1983, mas ficou engavetado. Só agora, 40 anos depois, vem à tona. O single chegou às plataformas no dia 6, e o álbum completo foi lançado no dia 20.
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— Adelzon viu no nosso canto afinidade com os spirituals americanos — conta o ex-tincoã Mateus Aleluia, de 79 anos. — Lá eram plantações de algodão, aqui de cana-de-açúcar. De certa forma, é um canto de trabalho, de perseverança, para se revigorar no que está fazendo.
Adelzon reforça:
— É a mesma importância do gospel americano, mas sem mídia que projete isso nacional e internacionalmente.
Os Tincoãs (nome de uma ave) nasceram em 1961 como um conjunto de bolero. Quando ressurgiram em 1973, com os remanescentes Dadinho (Grinaldo Salustiano) e Heraldo Bozas ao lado de Mateus, todos de Cachoeira (BA), mostraram canções baseadas nas religiões afro-brasileiras. “Deixa a gira girar” chegou às paradas de sucesso e ao programa Globo de Ouro, da TV Globo:
— O refrão é um canto de caboclo. Não havia só candomblé. Tínhamos liberdade — explica Mateus. — Cachoeira é uma cidade sincretizada, afro-barroca. Despertávamos com o sino da igreja católica, depois vinham os acordes do órgão da igreja. À noite, ouvíamos o som dos atabaques. Nossa formação tinha essa conjunção de culturas, de religiões.
— Em sambas-enredo, o refrão às vezes é afro, mas o resto da letra, não. Os Tincoãs cantavam letras inteiras em línguas africanas — destaca Adelzon. — Eu perguntava a eles: o que é isso? Eles diziam que era da tradição dos ancestrais, de um lugar chamado Roça do Ventura.
Ao ouvir as músicas, o príncipe nigeriano Francis Ifá Kaiodê disse que era iorubá arcaico, que não se falava mais nem na Nigéria. Os especialistas no assunto se surpreendiam com isso, e o público em geral era envolvido pela sonoridade construída por violão (Dadinho), atabaque (Mateus), agogô e ganzá (Heraldo, depois Moraes e, a partir de 1977, Getúlio de Souza, o Badu). Boa parte das músicas tinha versos em português, inclusive com mensagens contra injustiças raciais e sociais.
“Cordeiro de Nanã”, sucesso de 1977, teve o refrão cantado por João Gilberto no disco “Brasil”, gravado em 1981 com Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia. Os LPs dos Tincoãs são disputados em sebos.
“Canto coral afro-brasileiro” se manteve inédito porque Dadinho e Mateus foram para Angola em 1983 e não voltaram. Ficaram fascinados pela possibilidade de contato com as culturas africanas e pelo trabalho que era feito no país, que se tornara independente de Portugal em 1975.
Dadinho morreu em 2000, vítima de um derrame. Mateus, que se casou com uma angolana, retornou ao Brasil dois anos depois. Ele é, hoje, reverenciado por sua história e sua sabedoria. Gravou discos solo, participou de programas de TV e, depois de anos em Salvador, voltou para Cachoeira, “para o umbigo”.
— Quando você se torna museu, passa a ser olhado de maneira diferente — brinca. — Não fico nem um pouco incomodado. Isso me eleva. Pessoas podem ouvir a mensagem dos Tincoãs, baseada numa cultura ancestral.
Vozes irmãs
Mateus estimulou um projeto de lançamento do disco inédito, viabilizado pelo edital da Natura Musical. Das dez faixas, seis foram gravadas com o Coral dos Correios e Telégrafos do Rio, regido por Leonardo Bruno e Armando Prazeres. A interrupção do trabalho em 1983 fez com que o trio ficasse sem acompanhamento nas outras quatro canções.
— Tudo acontece como tem que acontecer — diz Mateus. — Do jeito que ficou, podem-se ouvir os Tincoãs como éramos e os Tincoãs com coral.
Adelzon exalta a afinidade entre Dadinho, Mateus e Badu:
— As vozes dos grupos de canto vocal têm de ser irmãs. A maioria das duplas sertanejas que dá certo é de irmãos. Os Tincoãs não eram da mesma família, mas tinham vozes irmãs.
Badu vive há muito tempo nas Ilhas Canárias, na Espanha, onde trabalha como músico. No momento, recupera-se de uma cirurgia. Também participou das gravações o lendário percussionista Pedro Sorongo.
— Pedro era um mestre. Não conheci ninguém que fizesse tantos efeitos e fosse tão criativo — exalta Mateus.
“Oiá pepê oiá bá”, louvação a Iansã, é o single. Entre inéditas e releituras, também há cantos dedicados a Iemanjá, Obaluê, Ogum e Ossanha. O sincretismo com a religião católica aparece em “Misericórdia” e “Salmo”.