Ao lançar “Planeta fome”, em 2019, Elza Soares disse, em entrevista ao GLOBO: “O Brasil só está gripado, vai passar logo.” Gravado em 2021, ano anterior à sua morte, este “No tempo da intolerância”, que chega hoje às plataformas de streaming, mostra que a artista pode ter se enganado no diagnóstico, mas não descumpriu a promessa de cantar até o fim, feita em “A mulher do fim do mundo” (2015).
Elza encerra os seus mais de 60 anos de carreira fonográfica com um disco de verdades incômodas. Um pedido de justiça para quem, entra ano sai ano, se vê na mesma barafunda. E o aviso está na introdução falada do disco: “Eu nunca disse que a luta tinha terminado.”
Álbum sem gorduras, que diz tudo em dez faixas, “No tempo da intolerância” segue a linha dos discos “A mulher do fim do mundo”, “Deus é mulher” (2018) e “Planeta fome” — verdadeiros prodígios em que Elza deu voz às suas inquietações de mulher, negra, pobre e insubmissa, e a todos mais que não tinham voz.
A faixa-título é um inventário da insanidade do país nos últimos anos, com uma mensagem que vale para todos os lados, numa citação que a cantora atribuiu a Martin Luther King (“se você quer um inimigo, é só falar o que pensa”). Foi uma das que Elza compôs, para o disco, com o empresário Pedro Loureiro e a dupla de hitmakers Jefferson Junior e Umberto Tavares.
O quarteto faz bonito ainda no samba estilizado “Pra ver se melhora” (sobre justiça alimentar), no afrobeat “Coragem” (sobre justiça racial, na qual ela alerta: “a minha boca vai continuar/ sendo uma arma letal/ contra o abuso de poder”) e o bolero “Te quiero” (relato de quem tem a coragem de dizer não ao amor errado).
Uma melodia de Dona Ivone Lara serviu a Elza e a Pedro no samba-funk “No compasso da vida”, a mais alegre e poética do disco (e, não por acaso, faixa final), em que a cantora exulta: “a mente parece que sente a alma da gente na boca do povo/ nascer mulher pra renascer de novo”.
![Capa de "No tempo da intolerância", álbum póstumo da cantora Elza Soares — Foto: Reprodução](https://s2-oglobo.glbimg.com/VQTLpOrnMbcTYSvNhEBUesj89-U=/0x0:3000x3000/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2023/s/Q/48cFq5QBWWeKBkKnWqQw/capa-elza-soares-no-tempo-da-intolerancia.jpg)
Como de costume em seus últimos discos, Elza também canta em “No tempo da intolerância” canções feitas na intenção da sua voz: e dá-lhe lição de justiça social no samba “Quem disse?”, de Isabela Moraes ; problematização do feminismo branco no afoxé “Mulher pra mulher (a voz triunfal)”, parceria com Josyara; mais o recado mordaz de Pitty na levemente funky “Feminelza” (“respeite esse corpo, ele não lhe pertence”) e a beleza que é o tango da recentemente falecida Rita Lee “Rainha africana”: justiça a quem passou a vida sendo “vista como nega maluca, uma preta lelé da cuca” e agora é “rainha africana, brasuca sul-americana”.
A artista pode não estar muito para a poesia no disco — que é bem punk e não teme os slogans —, ou para a perfeição da voz, aqui frágil e gutural. Mas trata-se de um trabalho arranjado e tocado com esmero, fluidez e graça. Justiça para Elza no momento de cantar para subir.
Cotação: Bom