Música
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Por — Rio de Janeiro

Se houvesse uma espécie de oráculo no mundo do samba, Antonio Candeia Filho, o mítico compositor portelense que atendia somente por Candeia, teria sido o responsável pelos textos que comporiam as profecias. Quando se tratava de debater questões do gênero musical e das escolas dedicadas a ele, o autor de “Dia de graça” era apocalíptico, vislumbrando um declínio das agremiações carnavalescas.

Parte de suas previsões foi registrada em um livro singular e histórico, o único que escreveu, lançado pela extinta editora Lidador em 1978. A obra, batizada “Escola de samba, árvore que esqueceu a raiz”, redigida em parceria com o professor e escritor Isnard Araújo. Após 45 anos, o livro celebrado por amigos e estudiosos volta pelo selo Carnavalize. Já se encontra em pré-venda e será festejado com sessão de autógrafos dos filhos dos autores, regada a cantoria e cerveja gelada, no Museu do Samba, aos pés do Morro da Mangueira, no sábado (14).

— Candeia foi o primeiro a gritar em alto e bom tom lá na década de 1970, para quem quisesse ouvir, que as escolas de samba, se não valorizassem os seus elementos genuínos, cairiam em desgraça. Ele não era otimista com os rumos das agremiações. Foi um visionário. Enxergou o que todos fingiam não ver por conveniência. Está aí o resultado. Candeia foi profético — avalia Rubem Confete, radialista, cronista, compositor e ex-presidente da Ala de Compositores do Grêmio Recreativo Escola de Arte Negra Quilombo (Granes).

Criado em 1975 por Candeia, após uma briga com a gestão de Carlinhos Maracanã na Portela, o Granes resumia os anseios do poeta em sua busca pela valorização dos autores de sambas de enredo, pela exaltação dos foliões em detrimento do gigantismo dos carros alegóricos e pela ressignificação das comunidades em sua relação com as agremiações. Também intentava dar uma resposta contundente à mercantilização e ao embranquecimento das escolas.

Na reedição, que preserva o prefácio de Sérgio Cabral (Pai) do original, ganha um texto de apresentação de João Baptista Vargens, autor do perfil biográfico de Candeia “Luz da inspiração”, originalmente lançado em 1987. A capa de “Escola de samba, árvore que esqueceu a raiz” foi modificada. No lugar do conceitual registro que capta o girar de uma baiana, há agora uma ilustração do artista gráfico Rodrigo Cardoso. Todo o conteúdo, no entanto, está mantido, conforme Leo Antan, editor do Carnavalize, acordou com os herdeiros.

— O olhar de Candeia e Isnard é completamente contra-hegemônico às narrativas que se perpetuaram sobre esse período. E seguem atuais até hoje — avalia Antan.

Para Selma Candeia, filha do compositor, a atemporalidade da obra dispensou quaisquer possibilidades de alteração do texto.

— O livro não retrata uma época, ao contrário do que pensam. Não é uma obra datada, mas, sim, que dialoga com o presente e também com um futuro tão óbvio quanto o que meu pai previu — diz ela.

Selma tem plena consciência da importância da preservação do legado de Candeia. Reconhece que o interesse das novas gerações pela obra do sambista, ex-policial que ficou em uma cadeira de rodas depois de levar cinco tiros numa briga de trânsito, advém da contemporaneidade das pautas sociais por ele defendidas e que se intensificaram ao longo de quatro décadas e meia.

— Continuamos debruçados em discussões sobre o preconceito étnico-racial e a necessidade incondicional de pobres e pretos ascenderem social e economicamente. Candeia foi criticado e incompreendido tão somente por expressar a sua percepção ferozmente crítica da realidade. Ele não dourava a pílula. Por isso, foi escorraçado pelo sistema. A intelectualidade o idolatrava, mas os dirigentes das escolas de samba, não. Incluindo os da própria Portela, com a qual ele rompeu. Hoje, Candeia é aclamado — orgulha-se.

briga na agremiação

Assim como o pai, Selma luta por tratamento digno dispensado aos compositores e aos trabalhadores do carnaval que, dos bastidores, fazem toda a magia acontecer durante o desfile de uma escola de samba. Tem fama de esquentada, igualmente a Candeia, o que não a impede de manter ótimos relacionamentos com acadêmicos, a classe artística e os seus pares nas agremiações. Quando avalia que deve se posicionar o faz sem receios. Com o sangue Candeia nas veias, tem se colocado contra a atual gestão da azul e branco de Oswaldo Cruz. Na mais recente eleição para a escolha do novo corpo administrativo da escola, em maio do ano passado, fechou com a oposição. Ela e outras filhas de baluartes da Portela tiveram os títulos societários cassados ou não concedidos. É uma discussão antiga que se acalorou nos dias que antecederam ao pleito. Ainda assim, Selma foi para a quadra. Não votou, mas se fez presente.

— É sobre tudo isso que o livro sinaliza. Não são páginas que falam de estética, mas, sim, sobre hegemonia. Expulsam-nos para que percamos a voz — diz ela. — Mas não há como apagar a obra e a trajetória de luta de Candeia.

“Escola de samba, árvore que esqueceu a raiz” é um trabalho construído a partir de depoimentos de portelenses e não portelenses, como os autores frisam logo nas primeiras páginas. Seu teor crítico leva em conta respostas a questionários distribuídos para grupos de pessoas que, com suas observações, ajudariam a alicerçar o que Candeia e Isnard chamariam de Museu Histórico Portelense. O projeto perdeu-se em função dos muitos embates que vinham travando na Portela, entre esses o decorrente da criação de um Departamento Cultural. Candeia abominava a ideia de um segmento que pudesse cercear a liberdade criativa de compositores com enredos escolhidos sem a participação da comunidade e ainda introduzir artistas, cenógrafos e outros profissionais que não viviam o cotidiano da escola. Na abertura do primeiro capítulo da obra, “O samba e suas raízes”, o recado é dado sem rodeios: “Para se falar em SAMBA (escrito assim mesmo, com letras maiúsculas), temos que falar em negro, para se falar em negro temos que contar a sua árdua luta através de muitas gerações, erguendo o seu grito contra o preconceito de raça e de cor, herança da escravidão”.

‘O mar serenou’

Adelzon Alves, radialista pioneiro na valorização do gênero e de seus compositores ainda em meados dos anos 1960, quando liderava a audiência entre meia-noite e 4h da manhã com o programa “O amigo da madrugada”, na Rádio Globo, conheceu bem Candeia. Foi ele o responsável por apresentar Clara Nunes ao compositor, do qual ela gravaria o sucesso “O mar serenou”. Segundo Adelzon, Candeia foi a liderança da cultura brasileira que o país não poderia ter perdido tão cedo.

— Era um personagem central, jamais figurativo. Em sua casa, na Rua Albano, na Taquara, ele reunia pessoas fundamentais para a luta contra a desconfiguração das escolas de samba. Natal era o homem forte da Portela, o provedor. Mas a liderança intelectual da escola naquele período era o Candeia. Tanto que quando rompeu com a escola e fundou o Granes todos os grandes nomes o apoiaram e permaneceram ao lado dele. Pena que morreu jovem, em novembro de 1978, no mesmo ano em que lançou este livro. Mas a sua chama de resistência, de fato, não se apagou nem se apagará.

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