No ano passado, Fabiana Cozza, além de outros projetos, planejava os shows de “Dos Santos”, álbum que lançou durante a pandemia. Recebeu um telefonema do produtor Marcus Fernando, que estava na casa de Nei Lopes e espantado com o tanto ainda inédito da produção do compositor. Os dois tinham se convencido de que só uma cantora poderia gravar parte daquele material: Fabiana. O resultado é o recém-lançado “Urucungo” (Biscoito Fino).
— Entendi como um chamamento — diz ela, admiradora do artista, de quem já interpretara músicas, mas também do intelectual Nei Lopes. — O que significa falar de Nei Lopes neste país? Se pegar a história social da música popular brasileira nos últimos 50 anos, quem vem contar com outro viés e com a vivência encarnada? Um desses é Nei Lopes. Antes, quem contava eram jornalistas, pesquisadores, entusiastas e muitos que tinham formação europeia, branca. Nei vem quebrar com isso, e com alta qualidade literária e de pesquisa.
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O escritor dedicou a Fabiana um dos capítulos do livro “Afro-Brasil reluzente — 100 personalidades notáveis do século XX”, de 2019. E a apoiou, com um artigo na revista Época, quando ela, em 2018, teve de desistir de interpretar Dona Ivone Lara no teatro por ser considerada, por parte do tribunal da internet, branca demais para o papel.
— Fabiana não é uma cantora qualquer — afirma ele. — É uma intérprete que estuda antes de cantar, que aprofunda o conhecimento sobre o que o autor quis dizer e escreveu. Além disso, escreve poemas admiráveis. Isto valoriza demais o nosso trabalho.
Jornalista de formação, Fabiana se profissionalizou na música há 25 anos quando subiu ao palco ao lado de Jane Duboc. Desde então, são nove discos. A ligação com o samba vem da infância. Seu pai, Oswaldo dos Santos, é personagem histórico da Camisa Verde e Branco, escola do bairro da Barra Funda, em São Paulo. O Cozza vem da mãe, descendente de italianos.
— Meu caminho é muito coerente. Sou uma mulher que nasceu no samba — ressalta. — Se ganho um Prêmio da Música Brasileira cantando (a obra do cubano) Bola de Nieve (no álbum “Ay amor!”), é porque sou uma mulher preta e entendo dessas negritudes. O samba me deu esse campo inteiro para poder jogar. A ideia de síncopa no samba é uma ideia de negacear, de drible, e eu desenvolvi minha musicalidade para isso: ijexá, samba de roda, partido-alto, samba-enredo.
Baú de Wilson Moreira
O repertório é variado em “Urucungo” — a palavra é uma das que designam berimbau no idioma quimbundo e dá título a um jongo feito por Nei com Marcelo Menezes. Mas é claro que o samba predomina. Quatro das 12 faixas são criações de Nei com seu principal parceiro, Wilson Moreira (1936-2018), com quem fez “Senhora liberdade”, “Coisa da antiga”, “Gostoso veneno” e outras. As que aparecem no álbum são da década de 1970, quando a dupla estava começando.
— Na minha avaliação, muita coisa que veio depois foi melhor — comenta Nei. — Digo da minha parte, como letrista, porque as melodias do Moreira foram sempre muito bonitas e instigantes.
Fabiana acha o material que ouviu tão bom que chegou a cogitar um disco só dos dois, a quem classifica como “Pelé e Garrincha”. A dupla está na abertura (“Dia de glória”) e no final (“Quesitos”), ambas as músicas críticas às transformações ocorridas nas escolas de samba. Nei faz um duo na última faixa. A primeira tem a participação de outra referência da cultura afro-brasileira: Leci Brandão.
— Botar Leci abrindo o disco é pôr a pauta do racismo escancarada. “Dia de glória” é a esperança de que um dia a gente vai superar tudo isso, não vai ser só objeto de estudo e objeto de televisão no dia do desfile — diz Fabiana. — O negro arquitetou o que a gente tem. Estamos recontando essa história, dando voz aos protagonistas. E, certamente, o Nei tem muita responsabilidade nisso.
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Ela acredita também ter feito um disco romântico. As duas canções que retratam melhor isso são “Pólen”, melodia de Fátima Guedes, e “Ofertório”, parceria com Francis Hime. E há outro não samba marcante: “Jurutaí”, um dueto com o coautor Guinga conduzido apenas pelo violão dele. Outra participação é de Ilessi, carioca radicada em São Paulo, em “Alquimias”, que Nei fez com Everson Pessoa.
Em quase todas as faixas, tocam músicos com quem Fabiana tem proximidade, como Henrique Araújo (cavaquinho e arranjos), Gian Correa (violão de sete cordas e arranjos) e Douglas Alonso (percussão).
Ela conta que seu pai chorou ao ouvir “Quesitos”, que remete a tempos idos das escolas de samba. Para Nei, Fabiana honra o que aprendeu com o pai:
— Tenho uma neta que acaba de completar 24 anos, obtendo licenciatura em Ciências Sociais pela UFRJ. E que dedica outra parte da sua vida a cultuar os orixás e a tocar diversos instrumentos de percussão. É claro que eu, sem querer, a influenciei. Assim vejo a Larissa cumprindo, de certa forma, um destino semelhante ao da Fabiana, o que me faz um bem enorme.