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As coisas não saíram de início como Yuja Wang pretendia. Quando a pianista chinesa residente em Nova York subiu ao palco do Theatro Municipal, na noite de quarta (13), para tocar Bach, alguns ruídos a perturbavam. Wang acionou o iPad na estante do piano e buscava se concentrar com a expressão de uma atleta de ginástica artística, mas algo a fazia olhar para cima, buscando o lado esquerdo dos balcões do teatro.

Algumas plateias podem ser barulhentas, mesmo sem querer. E o que chegava aos ouvidos de Wang na abertura da Série de Concertos O GLOBO/Dellarte era o ranger das cadeiras retráteis do Municipal — especialmente dos andares superiores do teatro. A tal ponto que a pianista de 37 anos interrompeu a execução da "Abertura à Francesa em Si Menor, BWV 831", de Johann Sebastian Bach. Fez um gesto apontando para a origem do ruído nos andares de cima e abandonou a sala por longos minutos, para choque de um Municipal com ingressos esgotados.

A tensão no ar, com indisfarçável ar de reprimenda, foi a senha para que o público se dividisse em dois: os que pediam silêncio chiando para os vizinhos, e os que ensaiavam palmas, como que chamando a artista para voltar ao seu assento. Quando retornou, ela hesitou em começar e perguntou à plateia se alguém também ouvia o tal ruído.

Foi quando uma mulher irritada com a hesitação de Wang gritou do terceiro andar do Municipal, em inglês, num dos mais loucos barracos do passado recente da praça Floriano: "Esse teatro é velho! Você precisa entender!”

"Não é culpa minha”, respondeu Wang, com gestos de quem não entendia as razões da reclamação. A espectadora ensaiou uma resposta, ouviu um forte “shut up!” da plateia, e o concerto, enfim, recomeçou. Tentando se concentrar, Wang retomou a Abertura de Bach, dessa vez com um toque ainda mais vigoroso, a mão mais pesada nas teclas, como se sua raiva momentânea quisesse provar um ponto.

Caipirinha para relaxar

A pianista chinesa Yuja Wang relaxa no Galeto Sat's, após concerto conturbado no Municipal — Foto: Marvios dos Anjos
A pianista chinesa Yuja Wang relaxa no Galeto Sat's, após concerto conturbado no Municipal — Foto: Marvios dos Anjos

“Deu pra reparar, é?”, disse ela ao GLOBO, aos risos, na churrascaria Fogo de Chão, onde era esperada para jantar após o recital turbulento. Depois, ela ainda esticaria a noite tomando caipirinha no Galeto Sat's, famoso fim de noite de Copacabana (mas atenção, o do caso Chico Moedas e Luisa Sonza é outro, a filial de Botafogo). Ali, na calçada da Barata Ribeiro com Prado Júnior, juntou-se anonimamente aos botafoguenses em êxtase pela classificação na Libertadores, determinada que estava a virar a noite sem dormir antes de zarpar para o Galeão às 6h da manhã, rumo a Atlanta. Lá, confessou outra lembrança que vai levar do Rio: o mormaço de Copacabana a deixou bem queimada nas costas e no colo.

Wang depois continuou o programa com execução de dois prelúdios com fuga da coleção opus 27 do russo Dmitri Shostakovich, que estará entre seus próximos lançamentos pela gravadora Deutsche Grammophon. São peças de rico contraponto e dificílima execução, com grandes saltos e exigência de agilidade que remetem a Bach, mas de inequívoco sabor russo.

A pianista Yuja Wang no Theatro Municipal — Foto: Divulgação/Erio von Kruger
A pianista Yuja Wang no Theatro Municipal — Foto: Divulgação/Erio von Kruger

Poucos pianistas no mundo são capazes de apresentar a velocidade, as dinâmicas e o colorido de Wang, uma formiga atômica de 1,58m que simplesmente desdenha de alguns mitos persistentes da música clássica.

– Ninguém precisa de mãos grandes para tocar Rachmaninov, isso é desculpa. Não é esporte. Sempre tem um jeito – afirmou ao GLOBO, entre comentários de êxtase pelo filme "Pobres criaturas", de Yorgos Lanthimos, que viu num dos voos da turnê latino-americana que passou também por Lima e Buenos Aires.

Silêncio

A primeira parte do recital, depois da retomada do BWV 831, foi tensa. Além de executar incríveis oitavas e escalas vertiginosas com a tranquilidade – enquanto seu pé enchia a sala de volume com um manejo poderoso do pedal – Wang também imprimiu pianíssimos de uma sutileza comovente, que pareciam destinados a ressaltar como a sala ainda a perseguia com ruídos de cadeiras e tosses. O temor na plateia era palpável, e os olhares pareciam patrulhar cada som que viesse dos vizinhos.

– Enfrentei situações como essa na China. Muitas vezes, algumas pessoas vão a recitais em busca de entretenimento, querem ouvir peças famosinhas enquanto conversam ou falam no celular. Fica em casa, vai ver uma série. Ontem (terça, 12) toquei no Teatro Colón, e as pessoas estavam muito mais silenciosas – diz Wang. – Martha Argerich contava que seu professor, Arturo Benedetti Michelangeli, a ensinou que era preciso "ouvir o silêncio", porque a música surge sempre a partir dele. Não quero ser uma nazi da sala de concerto, mas a realidade é que, quando eu não ouço o silêncio, não consigo dar o melhor de mim, porque sinto como se as pessoas não quisessem me ouvir — afirma Wang, que, depois do concerto, no restaurante, assistia ao celular a cada vídeo que recebia dos fãs pelo Instagram, em parte por nítido prazer em se ver, mas também como se quisesse entender o que tinha feito no palco.

Baladas de Chopin

Pianista Yuja Wang em recital no Theatro Municipal — Foto: Divulgação/Erio von Kruger
Pianista Yuja Wang em recital no Theatro Municipal — Foto: Divulgação/Erio von Kruger

A segunda parte trouxe as quatro baladas de Chopin, em que a interpretação romântica pede profundidade de sentimentos. Wang executou essas peças com altivez, concentração e virtuosismo, mesmo quando alguém abriu uma latinha com alguma bebida gaseificada na sala, fazendo "tssss". Muito embora o nível de ruído fosse menor depois do intervalo, ainda foi possível vê-la segurando pausas nas passagens mais sentimentais, como esperando que alguma cadeira rangesse até o fim, ou que algum surto de tosse se encerrasse, para daí continuar a música.

Diante de tudo, era de se esperar que a estrela de temperamento forte negasse muitos bis para os cariocas. Curiosamente, após sair ao fim da quarta balada de Chopin, Yuja Wang retornou ao piano para uma sequência de oito encores, quase todos peças de muita energia e sem pausas – o tipo de coisa que silencia uma plateia indomável. E aí, enfileirando a "Malagueña", do cubano Ernesto Lecuona, o "Danzón", de Arturo Márquez, a "Valsa da Dor", de Villa-Lobos, "A Cotovia", de Glinka, além de peças de Prokofiev e do ucraniano Nikolai Kapustin, que morreu em 2020, a pequena notável deixou o Municipal de joelhos, subjugado por uma artista que venceu a noite de virada.

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