Pedro Fontes, DJ e pesquisador que há 12 anos lança no YouTube áudios raros de João Gilberto, fez mais uma descoberta: dois concertos realizados em 25 e 26 de julho de 2003, no Masonic Auditorium, dentro do San Francisco Jazz Festival, nos EUA. Nos últimos dias, Fontes pôs 11 gravações na plataforma.
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O carioca radicado em São Paulo tem os shows na íntegra, o que significa 55 faixas (22 do dia 25, uma sexta, e 33 do sábado). Mas ele é sempre criterioso na seleção e trata os áudios antes de divulgá-los.
— A qualidade do som de sexta é boa. No de sábado, está sobrando grave, o violão está um pouco distante, mas é um showzaço, com quatro bis — conta. — Selecionei momentos dos dois dias de acordo com o que era mais raro e com o que eu achei mais interessante.
A joia principal é “Você vai ver”, música de Tom Jobim. Embora o cantor a tenha incluído no CD “João voz e violão”, de 2000, não havia registros ao vivo. Fontes subiu para seu canal @esqueletolavrador as versões das duas noites.
Ele também publicou duas versões de “Sem você”, parceria de Tom com Vinicius de Morais.
Nos outros áudios não há repetição de canções. Duas delas ele nunca gravou em estúdio: “Samba do avião” (Tom Jobim) e “Às três da manhã” (Herivelto Martins). De Jobim há mais duas, também com Vinicius: “A felicidade” e “Eu sei que vou te amar”. De Herivelto também tem “Ave Maria no morro”.
Ainda há registros de “Violão amigo” (Bide e Marçal) e, numa possível gentileza de João com o público americano, “’S wonderful” (George e Ira Gershwin), que ele gravou em 1977 no disco “Amoroso”, mas não costumava apresentar ao vivo.
— É possível perceber que a voz dele está mais grave. E parece que, metaforicamente, ele aproxima mais sua boca da boca do violão, para resolver a relação da voz com o instrumento — avalia Fontes, expert em comparar interpretações de João Gilberto.
Outro especialista, o pesquisador paulistano Otavio Filho, ouviu o material e também o compara com fases anteriores da trajetória do artista, que contava 72 anos:
— Há intervalos mais alongados, passagens de acordes mais evidentes, blocadas. Já a voz de João estava com um grave mais encorpado e o canto, nas divisões e na respiração, acompanhou a desaceleração do violão, como sempre formando um todo só.
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Fontes localizou as gravações no Internet Archive, projeto que disponibiliza arquivos gratuitamente. Foi o próprio San Francisco Jazz Festival que liberou as duas apresentações de João e centenas de outras. De brasileiros há, por exemplo, Gal Costa, João Bosco e Ivan Lins.
O festival publicou os áudios em 26 de agosto do ano passado. Mas ninguém tinha descoberto até que Fontes chegou a eles. O pesquisador diletante e DJ profissional se interessa por tudo o que se refere a João desde que o viu em 2008, em duas noites no Auditório Ibirapuera, em São Paulo, na turnê dos 50 anos da bossa nova.
— No fundo, sou um grande fã. É a música da minha vida, a que eu mais escutei. Fases diferentes do João estiveram juntas comigo em fases diferentes da minha vida — diz.
Ele ainda cogita lançar no YouTube algo a mais dos concertos de San Francisco, como “Isaura” (Herivelto Martins e Roberto Roberti). Mas ressalta que está tudo no site archive.org.
Nestes anos de caça à raridades, descobriu, por exemplo, todos os áudios do especial feito por João, Gal e Caetano Veloso na TV Tupi, em 1971, e que muitos pensavam perdidos. Também garimpou um show na França, em 1989, em que João interpreta “Menino do Rio” (Caetano) e do samba-enredo da Mangueira de 1986, sobre Caymmi. E, ainda, uma canja (três músicas) que o brasileiro dá num show do cantor americano Tony Bennett, na Itália, em 1998.
Muito a ser dito
Fontes também pretende localizar os áudios do último show de João — feito em Salvador, em 2008.
— Como alguém que ama muito a obra do João, quero vê-la tratada como merece. Ainda há muito o que se falar dele. E vejo que o interesse de gente jovem está aumentando. Se o imbróglio dos herdeiros se resolver, muito material inédito vai surgir — aposta.
Desde que João morreu, em 6 de julho de 2019, a herança está sendo discutida na Justiça. O cantor teve três filhos. Fitas caseiras fazem parte do espólio que ainda não pode ser aberto.