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Verão de 1982: artistas lembram marco zero do Rock Brasil, que mudou a cultura jovem do país

Há quase 40 anos, um verão com 'Menino do Rio', Circo Voador, Blitz e Barão Vermelho abria portas para uma revolução, que é lembrada em festival no CCBB
O musico e ator Evandro Mesquita, da Blitz, de volta ao Arpoador, onde o Circo Voador começou Foto: Leo Martins / Agência O Globo
O musico e ator Evandro Mesquita, da Blitz, de volta ao Arpoador, onde o Circo Voador começou Foto: Leo Martins / Agência O Globo

O ano de 1982 começou diferente para a juventude do Brasil. Naquele janeiro de verão, o Circo Voador levantou pela primeira vez a sua tenda no Arpoador, na Zona Sul carioca, e os cinemas foram tomados por “Menino do Rio”, fábula surfística do diretor Antônio Calmon. Logo, bandas como Blitz e Barão Vermelho ocuparam o palco do Circo e, a partir de março, também as ondas da Maldita (a Fluminense FM, de Niterói, reinventada como rádio rock). Antes de terminar o ano, a Blitz teria feito sucesso nacional e estreado em LP (bem como o Barão e o cantor Lulu Santos). Um caldeirão que mudou a cultura jovem do país.

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Marco zero do movimento rock dos anos 80, aquele verão carioca de 1982 serve de mote para o festival Rock Brasil 40 Anos, que abre quarta-feira no CCBB do Rio, com uma programação de shows, exposições, filmes e palestras. Personagem central dessa história, antes mesmo de ela começar (com o grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone, que em 1978 enchia teatros de meninos e meninas com a peça “Trate-me leão), o ator e cantor Evandro Mesquita, de 69 anos, viveu como poucos aquela estação: estava nas telas com o “Menino do Rio” e no palco do Circo com a Blitz.

— Foi nesse verão que a gente sentiu as coisas mudando. O Circo Voador concentrou um underground de rock, poetas de mimeógrafo, teatro e dança — recorda-se Evandro. — E o “Menino do Rio” era uma história que a gente tinha vivido, de descobrir Saquarema e sair da casa dos pais. Essa política da praia foi muito importante, das pessoas montando fábricas de pranchas e shorts.

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Par de Evandro no longa de Calmon, a atriz Cissa Guimarães admite que, durante as filmagens, nem se dava conta de que estava trabalhando.

— A minha personagem fumava maconha e ficava de biquíni o dia inteiro! — diverte-se. — Apesar de parecer um filme bobinho, “Menino do Rio” fala de um menino de classe média que larga tudo para viver do surfe. Hoje a gente tem o Gabriel Medina, mas na época tudo isso era marginal.

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Criador do Circo Voador (e ator do Asdrúbal ao lado de Evandro), o produtor Perfeito Fortuna festeja até hoje a sorte que teve ao conseguir autorização, em plena ditadura, para montar o seu centro cultural “no lugar mais visual da América Latina”: a praia do Arpoador:

— Ipanema era a internet da época, estavam todos lá. E todo mundo achava o Circo incrível, mas ninguém imaginava o que ia acontecer.

O Circo Voador, na praia do Arpoador, em janeiro de 1982 Foto: Arquivo O Globo / Agência O Globo
O Circo Voador, na praia do Arpoador, em janeiro de 1982 Foto: Arquivo O Globo / Agência O Globo

O rock acontece

Aos 19 anos, com o grupo Barão Vermelho (que àquela altura tinha Cazuza como vocalista), o guitarrista Roberto Frejat fez um dos primeiros shows do Circo Voador, que ficaria nas areias do Arpoador até março, para depois ressurgir e se fixar na Lapa.

— O Barão começou porque a gente queria fazer show. Não passava em nossas cabeças naquela época gravar um LP — conta Frejat. — Mas, a partir do momento em que nós fomos construindo uma cena de rock, as pessoas começaram a ver que poderiam dar sequência àquilo.

“Não passava em nossas cabeças naquela época gravar um LP. Mas, a partir do momento em que nós fomos construindo uma cena de rock, as pessoas começaram a ver que poderiam dar sequência àquilo”

Roberto Frejat
Ex-guitarrista e cantor do Barão Vermelho

E, para que o rock acontecesse no Rio, era necessária uma rádio rock, ou seja, a Maldita Fluminense FM, que estreou em 1º de março de 1982, com a voz de Selma Boiron aos 19 anos recém-completados e sem qualquer experiência.

— A rádio era uma experimentação, eles só sabiam o que não queriam: o estabelecido — conta Selma. — Para ficar na vibe da música que estava sendo tocada, tinha que ter atitude, nenhuma de nós estava ali cantando a audiência masculina. Até então, só tinha homem fazendo esse tipo de trabalho, saber que esse lugar poderia ser de uma mulher foi muito legal.

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Depois que uma fita cassete da Blitz tocou na Fluminense, as coisas começaram a acontecer bem rápido: a banda foi contratada pela EMI, conseguiu emplacar a música do primeiro compacto, “Você não soube me amar”, em diversas outras rádios e vendeu muitos discos.

— De repente, era legal ir ao Chacrinha, fazer um baile de subúrbio, tocar numa boate chique de São Paulo, ir a Sergipe... — explica Evandro Mesquita. — A rapaziada não tinha mais só os exemplos bons de Chico e de Caetano. Agora tinha uma poesia de rua que batia forte nas pessoas.

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Enquanto a Blitz levava para as rádios e TVs uma nova linguagem, com humor e naturalismo (que transbordaram até para as novelas, com atores do Asdrúbal como Regina Casé e Luiz Fernando Guimarães), em São Paulo uma outra efervescência acontecia com os punks, que em junho lançaram o álbum “Grito suburbano”, com os grupos Inocentes, Cólera e Olho Seco.

— O lance era registrar aquele som, para que ele alcançasse mais gente. A gente não tinha expectativa de fazer sucesso — diz Clemente Tadeu Nascimento , que até hoje toca com os Inocentes. — Em São Paulo era uma coisa mais dark, enquanto no Rio ela era solar.

Clemente Tadeu Nascimento (ao centro), com os Inocentes, em 1982 Foto: Flavio Cannalonga / Agência O Globo
Clemente Tadeu Nascimento (ao centro), com os Inocentes, em 1982 Foto: Flavio Cannalonga / Agência O Globo

Também em São Paulo, em 1982, Marcelo Rubens Paiva convivia com punks e universitários e planejava escrever sobre sua história. Filho do ex-deputado socialista Rubens Paiva (torturado e assassinado pela ditadura militar), ele ficou tetraplégico aos 20 anos, ao pular num lago. Marcelo não só contou sua história, como fez um raio-x de sua geração no livro “Feliz ano velho”:

— Aquela foi uma geração desdenhada, nos achavam alienados. E questionávamos a política estudantil, a nossa ação era pela cultura.

Frejat concorda:

— A coisa panfletária do movimento estudantil estava ficando velha para a gente — recorda-se ele, reconhecendo haver pessoas da sua turma “que ficaram mais reacionárias”. — Ficamos tão longe da política partidária que não conseguimos impor a personalidade dessa geração.

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Atriz de “Menino do Rio”, Claudia Ohana também identifica retrocessos de 1982 para cá:

— Não existia preconceito naquela bolha em que a gente vivia. Não existia raça, não existia cor, não existia gênero. Se você era gay ou não, isso não era uma questão. Mas depois veio a AIDS e as pessoas começaram com a separar tudo.

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Dos raros negros no rock dos anos 1980, Clemente acha que o racismo estrutural hoje é o mesmo da época.

— Empoderaram os negros, mas também os policiais violentos. Hoje, fico com medo de meus moleques fazerem as mesmas merdas que eu fazia.

Lulu Santos , que emplacou as canções “De repente, Califórnia” e “Tesouros da juventude” na trilha de “Menino do Rio” e estreou em LP em 82 com “Tempos modernos”, é o apaziguador entre o que foi e o que será:

— Sou mais de ver a vida melhor no futuro. O que sobrevive em 2021 é o tom de esperança de “Tempos modernos”. Porque esta, sim, é a última que deve dormir.

Passando a limpo a história

Primeiro grande evento-teste de cultura ao ar livre do Rio desde o começo da pandemia, o festival “Rock Brasil 40 Anos” acontece entre quarta-feira e 1º de novembro, no CCBB. A grande atração é composta pelos shows para 2.500 pessoas, em um palco montado na Praça da Pira, na Candelária. Frejat, Barão Vermelho, Leoni, Leo Jaime, Dinho Ouro Preto, Fernanda Abreu, Ira!, Marina Lima e Camisa de Vênus são alguns dos nomes escalados para o palco.

Inocentes e Fausto Fawcett também apresentam pocket shows nesse festival que ainda oferece exibições de filmes sobre rock brasileiro, exposições (de artes plásticas, fotos e multimídia), sessões de musicais (como aqueles sobre Cazuza, Renato Russo e Cássia Eller), além de palestras com o produtor, letrista e jornalista Nelson Motta.