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Vinil pirata: Cópias grosseiras de LPs raros são vendidas como originais e revoltam colecionadores

Discos, muitos produzidos em plástico esverdeado, são oferecidos on-line por valores sedutores o bastante para atrair incautos
Vinil pirata do disco "Tim Maia _ Racional " Foto: Ananda Porto / O Globo
Vinil pirata do disco "Tim Maia _ Racional " Foto: Ananda Porto / O Globo

Em “Vinil verde” (2004), curta de horror de Kleber Mendonça Filho, uma menina ganha da mãe uma caixa com vinis coloridos. O presente vem com apenas uma regra: o disco verde não pode ser ouvido. A curiosidade infantil logo supera a proibição, e a música que ecoa pela casa traz consequências sinistras para a família. No Brasil de 2021, vinis verdes proibidos também vêm aterrorizando colecionadores desavisados. Uma rede de pirataria na internet inunda o mercado com cópias grosseiras de álbuns raros. Os discos, muitos deles produzidos em plástico esverdeado do tipo PETG, são oferecidos como originais por valores sedutores o bastante para atrair incautos.

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“Tim Maia Racional, Vol. 1” (1974) é hit nas lojas piratas. O disco é cultuado tanto pela qualidade sonora quanto pelo aspecto esotérico das letras inspiradas na religião OVNI Cultura Racional. Clássicos do artista, como “Imunização racional (Que beleza)” e “Bom senso”, foram registrados no bolachão. Produzido de forma independente pelo músico, o LP teve baixa tiragem. Por isso, cópias originais chegam a R$ 2 mil em sebos. Já lojas virtuais oferecem o disco, supostamente oficial, por R$ 300.

Além de verde, uma cópia falsificada de “Racional, Vol. 1” vendida pela loja on-line Vinil Store tem bordas grossas, típicas de técnicas “artesanais” de produção. E há arranhões causados provavelmente por limpeza inadequada após a fabricação. Por fim, o tamanho do rótulo é menor que o padrão. Todos esses fatores contribuem para que a cópia seja reprovada no teste da vitrola, com som baixo, comprimido e repleto de chiados.

'Reprodução não autorizada é crime'

Registrada em um endereço em Mauá (SP), a Vinil Store, que tem 5,2 mil seguidores no Instagram, não é a única que oferece os álbuns verdes de Tim Maia. No perfil Ikuara Discos (com 12 mil seguidores), encontra-se o produto à venda por R$ 329. A página também oferece um kit com os três volumes da coleção, mais um compacto, por R$ 999. Empresários legítimos do ramo estimam que o custo de um disco pirata é no máximo de R$ 50.

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Caio Mariano, advogado que representa os herdeiros de Tim Maia, explica que quem vende disco pirata pode ser penalizado com prisão de dois a quatro anos, além de multa.

— Reprodução não autorizada é crime. Lesa e prejudica autores, intérpretes, gravadoras e o próprio consumidor, que compra um produto de má qualidade e fomenta, muitas vezes sem saber, um mercado ilegal — alerta Mariano, que pretende acionar os responsáveis pelas lojas piratas.

Procurada pela reportagem, a Vinil Store alega desconhecer a ilegalidade dos discos e afirma que as cópias de “Racional, Vol 1” citadas são importadas. A Ikuara Discos não retornou os contatos.

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Alta procura, consumidores enganados

Os falsificadores aproveitam a crescente popularidade dos vinis entre apaixonados por música. Relatório anual da Associação Americana da Indústria de Gravação aponta que as vendas de LPs aumentaram em 30% em 2020, totalizando US$ 619 milhões (cerca de R$ 3 bi). A alta se reflete no Brasil: grandes fábricas como a Polysom não aceitam encomendas até fevereiro por excesso de demanda — e a previsão de entrega é de 15 meses.

Com a alta procura, até consumidores diligentes são enganados. O colecionador Marcelo Batalha estava à procura de “Certa manhã acordei de sonhos intranquilos”, de Otto. Encontrou na internet e chegou a pedir fotos para garantir a autenticidade. Quando a cópia chegou, viu que fora enganado. Descobriu o responsável pela loja e abriu um processo na Justiça, além de relatar o caso num grupo no Facebook dedicado à troca de discos.

De tempos em tempos, o grupo recebe relatos assim. Foi o caso do comerciante Daniel Neiva Bacha, que fez um alerta a respeito de compactos piratas de “Me gusta” e “Amor real”, de Anitta.

— Comprei pensando que era material promocional, mas era pirata — explica ele. —Tem barulho no fundo.

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Os pequenos fabricantes se queixam da concorrência desleal. Bruno Borges, que dirige a Vinyl Lab em São Paulo, conta que como é um dos poucos no ramo na cidade, é confundido regularmente com os falsificadores, que enviam LPs de endereços na capital paulista. Cansado, procurou a Vinil Store e pediu que a loja deixasse claro que não tinha relações com sua empresa —o que foi feito através de um post, publicado em 5 de novembro de 2020. Bruno reclama que os produtos sujam a imagem da classe:

— Você percebe que usam material e máquinas ruins. Por sermos a empresa mais antiga do mercado, acham que somos os responsáveis. É o que mais me incomoda.

'Sei que piratas compraram minha máquina'

De Piracicaba (SP), Vice Fiori, técnico de corte da MGS, faz coro. Ele diz que os piratas usam materiais de qualidade inferior para lucrar mais.

— Para ganhar o meu salário, preciso fazer pelo menos 25 discos todo mês. Com os materiais que uso, se lucrar R$ 80 por disco é muito — afirma Vice.

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O maquinário profissional é caro e difícil de ser importado. Por isso, falsificadores costumam recorrer a fornecedores brasileiros, que produzem aparelhos mais simples, feitos com ajuda de tutoriais. Ciuens Silva, de Brasília, é um dos vendedores de máquinas. Ele estima que já tenha vendido dez para clientes no Brasil e outras 50 para o exterior por € 9.300 (cerca de R$ 60 mil). E admite que seus produtos podem não ter fins nobres:

— Meu negócio é vender o equipamento. Não me importa o que o comprador vai fazer com aquilo. Eu sei que há pirataria, e que pessoas que compraram minha máquina trabalham com isso.

O fabricante pode não se incomodar, mas colecionadores e profissionais da área concordam em uma coisa: o estrago já está feito. Produzidos sem controle de qualidade por fábricas ilegais, vinis piratas vão assombrar consumidores ao longo dos anos. Boa parte terminará em sebos no futuro. Então, os LPs voltarão a confundir e frustrar novas gerações de fãs desprevenidos em busca de raridades.

( Colaborou Luccas Oliveira )