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Zeca Baleiro: A argamassa do morro no grande bolo tropicalista

Cantor escreve artigo sobre Luiz Melodia

A primeira vez em que ouvi Luiz Melodia foi numa cena da novela “Pecado capital”. Sua voz de metal entoava os primeiros versos da tocante “Juventude transviada”: “Lava roupa todo dia, que agonia, na quebrada da soleira que chovia”. A canção, de melodia e letra tão estranhas quanto familiares, ressoou forte em algum lugar do meu imaginário. Tinha eu dez anos.

Só algum tempo depois, à mesma época em que viria a conhecer mais profundamente os seus pares, os pós-tropicalistas Macalé, Sérgio Sampaio e Novos Baianos, é que conheci os dois primeiros discos de Melô — “Pérola Negra” e “Maravilhas contemporâneas”. Penso que bastariam essas duas pérolas para fazer de Melodia um compositor essencial na grande galeria de bambas da MPB. Mas ele fez mais. “Mico de circo” e “Felino” são dois discos cheios de achados musicais e poéticos, ainda que não tenham causado o mesmo impacto dos dois primeiros (uma façanha impossível, por certo). “Claro”, LP pouco reconhecido e lançado no final dos anos 1980, é outra pequena obra-prima, um dos meus prediletos — a releitura de “Que loucura”, do colega e contemporâneo Sampaio, com violão bluesy matador do fiel escudeiro Renato Piau e o samba-quase-bossa “Decisão”, de Melodia e Sérgio Mello, valem o disco, mas ainda tem de lambuja uma versão surpreendente para “Broto do jacaré”, clássico jovem guarda de Roberto e Erasmo, e “Revivendo”, parceria de Melodia com outro mestre, o brilhante músico, compositor e arranjador Perinho Santana.

Quando ouvi “Pérola” e “Maravilhas”, percebi que havia algo de inaugurativo, de inédito ali, ainda que isso fosse algo muito vago pra mim, com meu repertório de adolescente ainda mal formado. Aquela sua poesia bruta, mínima, calava fundo na alma, mesmo que eu não conseguisse entender certos engenhos muito particulares da lírica do poeta do Estácio. O que ele poderia querer dizer com “o puro conteúdo é consideração” ou “sou quase nada mulato, não é questão de engano”? Pouco importava. Havia beleza naquele jeito meio impenetrável de dizer as coisas, e suas melodias eram ao mesmo tempo incomuns e assobiáveis, coisa que só os mestres sabem urdir.

Havia samba e blues, rock e seresta em Melô, uma camada carioca, de argamassa do morro no grande bolo tropicalista formatado anos antes por Gil, Tom Zé, Caetano e Mutantes. Havia algo que era só dele na sua música, tão dele, tão peculiar e crucial que nem o próprio conseguiria repetir.

E havia a figura principesca de Melô no palco, sua presença bonita e elegante, de silhueta bailarina, seu gestual de ator que domina o palco e hipnotiza a plateia.

Sua voz ecoará através do tempo como uma voz brasileira, amorosa, como são as vozes dos grandes crooners , sejam eles Nelson Gonçalves, Lúcio Alves ou João Gilberto. Quando o conheci, nos bastidores do “Acústico MTV” da Gal, em 1997, do qual os dois participamos, ele me disse, entre irônico e amigável: “Bem-vindo ao inferno!”. Agora eu digo: “Melô, bem-vindo à eternidade da música brasileira”.