Cultura Música

Zélia Duncan: Bálsamo negro, lindo, ágil, profundo

Cantora escreve artigo sobre Luiz Melodia

"Ver” Luiz Melodia cantar sempre foi uma experiência literal. Ver seu próprio corpo reagindo à sua voz e à sua musicalidade era massagem pros olhos, também. Eram duas coreografias. A voz e o corpo, serpenteando as melodias que saltavam da garganta pro microfone. Sempre lindo, ágil, profundo. Seu nome é Ébano, bálsamo negro, como Pixinguinha, Ataulfo Alves, Ismael Silva, Nelson Sargento, Mestre Marçal, Monarco, Itamar Assumpção e outros tantos. Uma nobreza irresistível no jeito de cantar e vestir o corpo com a canção. Samba bluenote . Jazz em português. Samba luxuoso com pandeiro. Canção na sua voz virava coisa só sua. Timbre, eis o bem maior de um cantor. Metal, garganta, vibrato rouco, coração. “Forte feito cobra coral.” Compositor de marca forte, carioca nos assuntos, no andar. Intérprete que foi se enchendo de consistência a cada apresentação. Ficam conosco neste mundo, no mesmo patamar, a meu ver, o cantor e o compositor. Até Cazuza virou coisa sua, em “Codinome Beija-flor”. Não estava sempre compondo obras inéditas, mas estava sempre pintando o sete cantando por aí, dando shows de interpretação, misturando a alma de cantor com a alma negra linda, sobrevivente orgulhosa e exemplar, neste país de preconceitos cínicos e velados.

“Sou peroba/ Sou a febre/ Quem sou eu?/ Sou um morto que viveu/ Corpo humano que venceu/ Ninguém morreu.”

Estamos tão consternados com essa ausência. Acordei murcha. Tenho minhas histórias com ele. A primeira ainda nos anos 1980, Projeto Pixinguinha sob a batuta mágica de Hermínio Bello de Carvalho, cantamos no Teatro Nacional de Brasília. Eu, ele e Rosa Maria. Entrou pro meu currículo quase virgem de artista regional. Depois, em 1990, foi o convidado do meu disco de estreia, aceitou cantar comigo quando ninguém me conhecia. Honrou-me pra sempre, num dueto em sua música “Segredo”. Na minha primeira demo estava “Farrapo humano” . “Eu canto, suplico, lastimo, não vivo contigo. Sou santo, sou franco, enquanto não caio, não brigo”.

Ah, Melô, que saco escrever sobre você, sem você aqui... Sem a possibilidade de nos esbarrarmos por aí nas esquinas, nas gravações, no Rival. Que saco não poder sair de casa pra te ver cantar e esquecer de mim, de tudo que anda nos acontecendo por aqui, pelo menos por duas horas. Queria estar chorando assim de emoção boa, num show seu. Mas olha, estaremos aqui, te cantando, te evocando, te reverenciando, te querendo toda hora. Porque você tem tudo a ver com o Rio que a gente ama, com o Brasil que a gente gosta de cantar. Estaremos juntos. O Estácio, nós e você.