Cultura Flip

Na Flip 2020, Jonathan Safran Foer relaciona destruição da Amazônia ao consumo de carne

Autor americano evitou comentar a atuação política brasileira na questão ambiental, enquanto a poeta indígena Márcia Kambeba se emocionou ao falar do desmatamento
Jonathan Safran Foer em mesa virtual da Flip com Márcia Kambeba e a mediadora Jennifer Ann Thomas Foto: Reprodução
Jonathan Safran Foer em mesa virtual da Flip com Márcia Kambeba e a mediadora Jennifer Ann Thomas Foto: Reprodução

SÃO PAULO — A terceira mesa da edição digital da Festa Literária de Paraty (Flip) teve a preocupação com as questões ambientais no Brasil e no mundo como foco. Batizada de "Florestas vivas", a conversa juntou o romancista americano Jonathan Safran Foer e a poeta e geógrafa amazonense Márcia Wayna Kambeba.

O primeiro, conhecido por best-sellers de ficção como "Extremamente alto e incrivelmente perto" (2005), que rendeu o filme "Tão forte, tão perto" (2011), tem abordado o meio ambiente em seus livros de não ficção, casos de "Comer animais" e "Nós somos o clima: Salvar o planeta começa no café da manhã", todos lançados pela Rocco. Já Márcia explora em sua poesia reflexões sobre a violência contra os povos indígenas e, como mostra no livro "Ay kakyri Tama - Eu moro na cidade", os conflitos com a vida urbana. A mediação ficou com a jornalista Jennifer Ann Thomas.

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Instigado pela mediadora a opinar sobre a atuação política do governo brasileiro na questão ambiental, Foer se desvencilhou, dizendo não poder falar nada "a não ser sentir empatia por vocês". Mas opinou sobre a causa da destruição da Amazônia e os principais interesses por trás.

— 91% do desmatamento no mundo é causado pela indústria do gado, seja para a criação dos animais ou para plantação de soja, que os alimenta — enfatizou Foer, que tem um livro sobre o assunto, "Comer animais". — Não é uma conversa fácil em culturas que enfatizam a carne, como os Estados Unidos e o Brasil. Não estou dizendo que todo mundo tem que se tornar vegetariano, mas temos que comer muito menos carne do que comemos nesse momento. É o que os cientista nos dizem. A destruição da Amazônia diz respeito ao consumo de carne.

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Já Márcia se emocionou ao desabafar sobre o crescente desmatamento na Amazônia e fez coro pela defesa da demarcação dos povos indígenas.

— O clima está gritando. O povo da cidade pensa com o cifrão na frente. O querer sempre mais gera desmatamento, gera poluição dos rios com mercúrio do garimpo, gera as queimadas... A Amazônia não é o pulmão do mundo, não é eterno verde. E ela está sendo fatiada. Ela é de todos nós.

Comparações com ações contra a Covid-19

Estimulado por Jennifer a refletir sobre o distanciamento entre as pessoas e o meio ambiente, Foer fez uma comparação com a crise sanitária causada pelo novo coronavírus. Para o escritor, as ações de urgência tomadas por governos e cidadãos contra a pandemia estão diretamente ligadas a temores pessoais:

— Se Donald Trump tivesse dito que fecharíamos a economia ou que teríamos que lavar as mãos para que as pessoas em Bangladesh não pegassem Covid, nós não teríamos nos movimentado. Os americanos, por exemplo, não têm medo pessoal da mudança climática. Para isso, eles teriam que dar um salto de empatia para o outro lado do mundo, para Bangladesh, outro salto de empatia para o futuro, pensar em seus netos, e para a própria natureza. O estrago causado pela Covid-19 não chega nem perto do tamanho da perda que o planeta terá pelo descaso ambiental.

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O escritor explicou que seu mais recente livro, "Nós somos o clima", não tenta mudar a cabeça dos negacionistas de questões como o aquecimento global, mas estimular naqueles que confiam na ciência que as ideias precisam sair de suas cabeças e "partir para suas mãos, para as ações":

— Por que existem coisas que a gente sabe, mas não acredita? Apesar de ser baseada na ciência, a questão climática é pessoal, temos que lidar como indivíduos. E é um problema multifacetado, liga os desmatamentos na Amazônia com os incêndios na Califórnia, com os refugiados na Síria... Não temos outra maneira de sobreviver exceto em algum tipo de harmonia sustentável com o nosso planeta.

A ideia pode ser resumida numa frase de Márcia da relação dos povos indígenas com a natureza: "nada é meu, tudo é nosso". A escritora de etnia omágua/kambeba também citou a pandemia de Covid-19 ao explicar a importância de publicar o saber indígena, comumente relacionado à oralidade.

— A Covid-19 vitimou muitos anciões dos povos indígenas. E cada ancião é um livro, uma memória viva, e muitas vezes não conseguimos repassar tudo. É necessário registrar esses saberes, com as ferramentas que nos deram para desenhar o pensamento, fazer um equilíbrio entre narrativa e literatura, unir dois mundos.

Mais duas mesas nesta sexta

A programação segue nesta sexta-feira com outras duas mesas. A primeira, às 18h, reúne Eileen Myles, poeta, performer, romancista e jornalista da geração beat, com suas tradutoras para o português, Bruna Beber e Mariana Ruggieri. O encontro é batizado de "Eileen para presidente!". Depois, às 20h30, "Animais abatidos" promove o encontro entre a romancista colombiana Pilar Quintana e a brasileira Ana Paula Maia, autoras que tratam em suas obras de personagens vivendo em contextos ordinários, mas que acabam se defrontando com aspectos absurdos da vida.

Em virtude da pandemia do coronavírus, a Flip ocorre totalmente em formato virtual pela primeira vez na história. A programação vai até domingo, sendo composta por 12 mesas transmitidas ao vivo nas redes sociais do evento, além de contar com vídeos gravados. Inicialmente a festa estava prevista para acontecer entre 29 de julho e 2 de agosto.