Cultura

'Na Rússia, a esperança é a primeira a morrer', diz escritor Víktor Eroféiev

Opositor de Putin e filho de um intérprete de Stálin, autor apresentava um programa na rádio Ekho Moskvi, fechada após pressão do Kremlin; ao GLOBO, ele apontou semelhanças entre seu país e o Brasil, como a relação tensa com a democracia, o povo e as elites
O escritor russo Víktor Eroféiev, autor de "Encontrar o homem no homem: Dostoiévski e o existencialismo" Foto: SINISSEY / Divulgação
O escritor russo Víktor Eroféiev, autor de "Encontrar o homem no homem: Dostoiévski e o existencialismo" Foto: SINISSEY / Divulgação

Na última sexta-feira (4), o escritor russo Víktor Eroféiev gravaria mais episódio do programa "Osóboie Mniénie" (Opinião singular), que ele apresentava na rádio Ekho Moskvi (Eco de Moscou), fechada na quinta após pressão do governo para excluir palavras como "guerra” e "invasão" do noticiário. Eroféiev soube do fim da emissora, em Riga, capital da Letônia, onde participava do júri de um festival de documentários. O próprio escritor já foi objeto de um filme, "Libertino russo", de 2012, no qual se descreve como "o homem mais livre no país mais ridículo do mundo".

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Opositor de Putin e autor de livros como “O bom Stálin”, “Enciclopédia da alma russa” e “Os Akumides”, inéditos no Brasil, Eroféiev é um dos intelectuais mais combativos de seu país. Nos tempos soviéticos, editou uma revista clandestina que custou a carreira diplomática de seu pai, tradutor dos discursos de Stálin para o francês. No ano passado, sua obra começou a chegar ao Brasil: a Kalinka publicou "Encontrar o homem no homem: Dostoiévski e o existencialismo".

Em entrevista ao GLOBO, de Riga, Eroféiev, de 74 anos, explicou por que, para entender a guerra na Ucrânia, devemos ler “Os demônios”, romance de Dostoiévski sobre a atuação de terroristas revolucionários na Rússia tsarista.

Como a intelectualidade russa, que tem uma longa tradição de resistência ao autoritarismo, tem reagido à invasão da Ucrânia?

Na Rússia, a democracia durou menos do que uma gestação: de fevereiro e outubro de 1917 (entre a queda da monarquia e a Revolução Bolchevique) . Não temos sociedade civil, apenas pessoas ilustradas, a chamada "intelligentsia" , que protesta contra a guerra e envia cartas ao governo. Não vai dar em nada. Mandamos cartas para o governo desde a Perestroika! Incluímos nossos nomes em abaixo-assinados sem nenhum peso político. Putin vai até o fim.

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A propaganda do Kremlin de fato funciona?

O Ocidente não conhece a Rússia. Não é uma questão de propaganda. Os russos veem Putin como seu reflexo no espelho, só que em um pedestal. Todo mundo quer ser Putin. Ele é um dos nossos, gosta de pescar, de posar sem camisa para mostrar que é machão. Nos achamos o melhor povo do mundo e que a culpa da guerra é da Ucrânia ou dos Estados Unidos. Apenas uma minoria ínfima acha que a culpa é da Rússia.

Você apresentava um programa na rádio Ekho, de Moscou, fechada ontem por pressão do Kremlin...

Hoje mesmo eu gravaria um episódio do programa, mas me ligaram para avisar que acabou de vez, tanto as transmissões radiofônicas quanto o canal no YouTube. Fazia o programa desde 1990, com periodicidade livre. Já te disse que sou o homem mais livre da Rússia?

As sanções econômicas podem minar o apoio a Putin?

A economia russa é muito conectada com o Ocidente. Pararam até de produzir carros porque não há como importar peças da Alemanha. Até a Lego suspendeu remessas para a Rússia. Mas Putin não se abala. Ele tem a realidade dele e acredita nela. Nós também temos a nossa realidade, mas a diferença é que não temos bombas atômicas. Quanto ao fim da era Putin, vejo duas possibilidades. Ele pode morrer e tudo mudar rapidamente. Nem Stálin era imortal. Ou a elite russa pode se cansar dele. Mas ele é saudável e bem relacionado. O apocalipse vai continuar. Na Rússia, dizemos que tudo morre, mas a esperança sobrevive. No meu livro "Enciclopédia da alma russa", escrevi que na Rússia a esperança é a primeira a morrer.

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Por que "Enciclopédia da alma russa" foi chamado de "russófobo" e "blasfemo" por professores da Universidade Estatal de Moscou?

Como nossa situação política sempre foi ruim, precisamos acreditar nas pessoas, porque do contrário nada muda. Nossos escritores sempre acreditaram que o governo podia ser ruim, mas nosso povo era bom: Púchkin, Dostoiévski, Tolstói . Escrevi que não somos tão bons assim. Professores da universidade onde eu estudei me declararam inimigo da Rússia! É uma pena que o livro não esteja disponível no Brasil, porque não fala sobre só sobre a Rússia, mas sobre nossa tendência de nos acharmos os bons e só enxergar o mal no outro: nos americanos, nos chineses, nos judeus. Nisso, russos e brasileiros somos parecidos.

Você enxerga semelhanças entre o Brasil e a Rússia?

Somos países gigantescos que mantêm relações tensas com a democracia, o povo e as elites. Temos imaginação, boa música, dançamos bem. Sabemos expressar artisticamente nossa visão de mundo. Não fazemos parte do concerto das nações modernas e somos cheio de traumas e complexos por causa disso. Acreditamos que não fazemos nada de errado. É o Ocidente que nos trai continuamente. É positivo que o Brasil e a Rússia se vejam espelhados um no outro. Assim conseguimos ver a encrenca em que nos metemos.

Você tem familiaridade com a cultura brasileira?

A cultura latino-americana, incluindo a brasileira, impressionou o mundo. Confesso gostar mais de Marquês de Sade, Céline e Dostoiévski, autores que se propuseram a abrir a cabeça dos homens e descobrir o que se passava lá dentro. Embora eu goste de Gabriel García Márquez e Jorge Amado , seu exotismo e folclore não nos ajudam a entender o que está acontecendo hoje. Amado, que era amigo dos comunista. Os soviéticos sabiam fazer amigos: convidaram os escritores para viajar pelo país, publicavam seus livros, eram gentis.

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O que ler, então, para entender o que está acontecendo hoje?

"Os demônios", de Dostoiévski, que mostra o que acontece quando nos achamos melhores que o resto do mundo e estamos disposto a tudo, até a matar, para mudar as coisas.

No livro "O bom Stálin", que a Kalinka vai publicar no Brasil, você recorda a relação de seu pai com o ditador. Esse livro nos ajudar a entender como pessoas que consideramos decentes podem apoiar a tirania?

O livro é sobre isso. E também sobre como minha consciência foi mudando: de filho do intérprete de Stálin para escritor dissidente. O título é irônico. É claro que Stálin não era bom, ainda que a minha infância stalisnista tenha sido feliz. Eu comia caviar! Stálin é o modelo dos pais de família e dos homens de negócio: pode ser bom e nos sustentar, mas ainda é Stálin! Conheço um empresário em Nova York que é um verdadeiro stalinista. Aprendeu que para ganhar dinheiro tem que ser um ditador.

Você ainda se considera “o homem mais livre do país mais ridículo do mundo"?

É uma descrição irônica. Não é difícil ser o homem mais livre da Rússia. Não há muita competição.

Capa de "Encontrar o homem no homem: Dostoiévski e o existencialismo", de Víktor Eroféiev (Kalinka) Foto: Reprodução / Divulgação
Capa de "Encontrar o homem no homem: Dostoiévski e o existencialismo", de Víktor Eroféiev (Kalinka) Foto: Reprodução / Divulgação

Serviço:

"Encontrar o homem no homem: Dostoiévski e o existencialismo"

Autor: Víktor Eroféiev. Tradução: Marina Darmaros. Editora: Kalinka. Páginas: 240. Preço: R$ 69,90.