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Cultura

'Não escrevi meu livro para ensinar gente branca', diz best-seller Kiley Reid

Autora de 'Na corda bamba', que tem babá como protagonista e vai virar filme, americana afirma que é possível entreter e fazer crítica social ao mesmo tempo e não sabe se o mercado editorial está de fato se diversificando ou 'se é só marketing'
A escritora americana Kiley Reid, autora de "Na corda bamba" (Arqueiro): "Romances em que todos os personagens são brancos e ricos também são sobre classe dinheiro e raça" Foto: David Goddard / Divulgação
A escritora americana Kiley Reid, autora de "Na corda bamba" (Arqueiro): "Romances em que todos os personagens são brancos e ricos também são sobre classe dinheiro e raça" Foto: David Goddard / Divulgação

SÃO PAULO — A americana Kiley Reid não é daquelas escritoras que querem distância da política e se esforçam para afastar qualquer insinuação de que sua ficção também reflete, de modo mais ou menos crítico, sobre o mundo em que vivemos. Quem resolver segui-la no Twitter, há de notar que ela não esconde a que veio e, de cara, anuncia: "Escrevo ficção sobre classe, dinheiro e raça".

E é verdade. Seu romance de estreia, "Na corda bamba", lançado em dezembro passado nos Estados Unidos e agora no Brasil, pela Arqueiro (selo da Sextante), acompanha a relação de Emira, uma jovem babá negra sempre preocupada em não adoecer pois está prestes a perder seu plano de saúde, e Alix, a mãe da menininha de quem ela cuida, uma mulher branca, feminista e fã de Hillary Clinton. "Na corda bamba" escalou a lista de mais vendidos do "The New York Times", vai virar filme e arrancou elogios até de Jojo Moyes , autora "Como eu era antes de você" e outros best-sellers protagonizados por mulheres que lutam para pagar as contas.

— Toda ficção é política. Romances em que todos os personagens são brancos e ricos também são sobre classe, dinheiro e raça. Como leitora, procuro livros que falem desses temas sem colocar a ficção em segundo plano — afirma Kiley, em entrevista por Zoom.

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Na conversa, ela dá alguns exemplos do entretenimento politizado que aprecia, como o filme coreano "Parasita" , vencedor do Oscar deste ano, e o romance "Canção de ninar" , da franco-marroquina Leïla Slimani .

"Parasita" consegue deixar o espectador ansioso pela próxima cena e ainda mostrar as decisões extremamente difíceis que as classes trabalhadoras são obrigadas a tomar. Gosto de obras que, ao nos entreter, também comentam a realidade, mas sem martelá-la na nossa cabeça.

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"Na corda bamba" é exatamente isso: a narrativa é ágil e descomplicada, capaz de prender o leitor, mas sem se furtar a fala sobre o racismo, o medo que os americanos de adoecer e não conseguir arcar com os custos médicos e a culpa que progressistas brancos não sabem onde enfiar. Kiley frequentou o prestigioso curso de formação de escritores da Universidade de Iowa, o Iowa’s Writers Workshop. Já nas primeiras cenas de "Na corda bamba". ela prova que assimilou bem as técnicas de escrita criativa (apresentar o conflito de cara, atenção aos detalhes e aos diálogos, etc) e que sabe colocá-las a serviço de uma história que pode causar desconforto no leitor que só queria se relaxar com um best-seller.

Lugar fantasmagórico

No primeiro capítulo, Emira vai a um "supermercado de gente rica" com a menina branca de quem cuida e é abordada por um segurança que insinua que ela talvez tenha sequestrado a criança. A confusão só acaba quando o pai da criança, um âncora de telejornal, aparece e dá uma dura no segurança. Pouco antes, ele havia soltado um comentário racista ao vivo, o que desesperou sua mulher, Alix, uma influenciadora que quer descolar trabalho na campanha presidencial de Hillary Clinton (a história de passa em 2015).

Capa de "Na corda bamba", livro da escritora americana Kiley Reid, publicado pela Arqueiro Foto: Reprodução / Divulgação
Capa de "Na corda bamba", livro da escritora americana Kiley Reid, publicado pela Arqueiro Foto: Reprodução / Divulgação

Alix desenvolve uma constrangedora obsessão por Emira e tenta, a todo custo, provar que é uma branca boa e antirracista. A brancos que, como Alix, se esforçam, meio canhestramente, para serem aliados na luta dos negros, Kiley tem um conselho: preocupem-se menos com o seu vocabulário e mais em combater injustiças estruturais.

— Nos filmes, na mídia, a ênfase é sempre o indivíduo e não a sociedade. Para ser antirrascista basta dizer as coisas certas. Mas é como o aquecimento global: não adianta só as pessoas reciclarem o lixo se a indústria vai continuar poluindo o ano que vem, mesmo que os EUA tenham um novo presidente — diz. — Que tal pensar se os negros têm acesso ao sistema de saúde? Ou, se você tem uma babá ou empregada doméstica negra, não pagar a ela menos do que você aceitaria receber.

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Kiley conta já ter trabalhado em muitos "espaços brancos": num shopping e num café, como recepcionista e, durante seis anos, como babá. Em todos esses lugares, encontrou pessoas brancas que, embora soubessem que ela ganhava menos do que eles, tentavam fazer amizade "só para não se sentir mal".

Ao estrear na ficção, escalou uma babá como protagonista porque o lugar "meio fantasmagórico" que as trabalhadoras domésticas racializadas ocupam nas casas da elite expõem a "ansiedade de classe" de quem não quer ter peso consciência por explorar o trabalho de alguém.

— Sou feminista e comemoro as conquistas das mulheres, mas às vezes parece que há o subentendido de um dos segredos do sucesso é explorar o trabalho de outra mulher. Melhor ainda se for o de uma mulher racializada que não faça você se sentir culpada. A maioria das babás não consegue pagar pelo mesmo serviço para a própria família — afirma. — Nos EUA, há séculos mulheres negras criam crianças brancas. Ninguém pode apagar essa história, não importa o quanto pague à própria babá ou se se dá bem com ela. Mulheres negras recorrem ao trabalho doméstico por não ter outras alternativas e isso afeta o modo como a sociedade as enxerga. Por exemplo: espera-se que as mulheres negras sejam mãezonas, carinhosas, sempre prontas a dar conselhos.

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Kiley abandonou os empregos mal pagos de babá, recepcionista e balconista, mas continua transitando por "espaços brancos", como as listas de mais vendidos, o mercado editorial e a indústria cinematográfica (ela atua como produtora-executiva da adaptação de "Na corda bamba" para as telas). Ela questiona a suposta abertura das editoras à publicação de autores negros, cujos livros são muitas vezes tratados como "ferramentas pedagógicas" para dar ensinar uma ou outra lição a leitores brancos.

— Ainda não estou convencida de que o mercado editorial está se diversificando ou se é só marketing — diz. — É um pouco frustrante quando apresentam o trabalho de artistas negros como uma obra que "tem algo a ensinar" ou que é "importante" ou "oportuna". Quem usa palavras como "importante" e "oportuna" quer dizer, na verdade, que nunca havia pensando ou se interessado por determinados assuntos antes. Não escrevi meu livro para ensinar gente branca, mas porque eu gosto de contar histórias.

Serviço:

"Na corda bamba"

Autora: Kiley Reid. Tradução: Roberta Clapp. Editora: Arqueiro. Páginas: 320. Preço: R$ 49,90.