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Cultura

'Não tenho obrigação de absolutamente nada', diz Ana Paula Maia sobre escrever personagens femininas

Primeira pessoa a ganhar duas vezes o Prêmio São Paulo de Literatura, escritora prepara série sobre bruxas: 'Minha mãe é evangélica e está contando os segundos para assistir'
Ana Paula Maia: autora estreia pela Companhia das Letras co romance Foto: Rafael Dabul/Divulgaçao
Ana Paula Maia: autora estreia pela Companhia das Letras co romance Foto: Rafael Dabul/Divulgaçao

RIO - O sombrio e o violento não costumam assustar a escritora Ana Paula Maia na sua literatura, e sim atraí-la. Mas, fora dela, ela diz que não é bem assim.

— Deus me livre ver morto. Uma coisa é escrever em casa. Mas tenho horror a essas coisas — garante a autora de 41 anos, nascida em Nova Iguaçu, que virou no último sábado a primeira pessoa a vencer duas vezes (e consecutivamente) o Prêmio São Paulo de Literatura na categoria Melhor Livro do Ano, graças a seu último romance, “Enterre seus mortos” (Companhia das Letras).

— Valeu a pena ter escrito dois livros em um ano e quatro meses. Meu cérebro estava torcido no final — diz ela, que, após lançar em 2017 o vencedor anterior do prêmio, “Assim na terra como embaixo da terra”(Record), embarcou no projeto seguinte por uma encomenda do produtor de cinema Rodrigo Teixeira . Responsável por filmes internacionais como “Ad astra” e “Me chame Pelo Seu Nome”, a produtora de Teixeira, RT Features, detém os direitos de adaptação da obra.

— A escrita da Ana Paula é visualmente muito poderosa, o que faz de “Enterre seus mortos” um grande livro, tanto literariamente quanto por seu potencial para adaptação audiovisual — afirma o produtor.

Em “Enterre seus mortos”, Ana Paula voltou a escrever sobre Edgar Wilson , personagem que aparece em cinco de seus sete livros publicados. O nome é uma referência a Edgar Allan Poe (1809-1849) e a William Wilson, protagonista que dá nome a um dos contos de Poe. Mas se o Wilson do escritor americano é um homem atormentado com medo de encontrar alguém idêntico a si mesmo, Ana descreve o seu personagem como “um parceiro, um irmão”.

— O Edgar é quase uma entidade. Ele tem muito de mim, tem muita sombra. Me sinto extremamente segura com ele. Quando quero escrever um livro e estou com uma certa dificuldade, coloco o Edgar e consigo — conta ela.

Capa do livro 'Enterre seus mortos', de Ana Paula Maia Foto: Divulgação
Capa do livro 'Enterre seus mortos', de Ana Paula Maia Foto: Divulgação

Por ser um personagem que transita por décadas e profissões sem envelhecer, Ana também diz que Edgar é como o Jason da série de filmes “Sexta-Feira 13”. Em “Enterre seus mortos”, ele é um trabalhador responsável por coletar animais mortos na estrada, que acaba se deparando com cadáveres humanos. Para dar fidelidade à história, Ana entrou em contato com um preparador de corpos com trinta anos de experiência. Algumas dos acontecimentos macabros retratados no livro, ela diz, são na verdade casos reais contados pelo homem, que também lhe fez confrontar os mortos.

— Quando falei com esse preparador, ele queria me mostrar um homem que tinha levado um tiro na cabeça. Levantou e me mostrou. Disse que era um morto passado, que nem parece gente. E aí ele perguntou: “tem um fresco ali, quer ver também?” — recorda.

Ao longo do livro, outra presença marcante é a religião. O colega de Edgar é um padre excomungado, enquanto grupos evangélicos são retratados nas margens das estradas que os dois cruzam. Cristã, Ana Paula diz que foi criada numa casa com liberdade de credos: tem pai católico, avó kardecista, mãe evangélica e uma tia no candomblé.

— As minhas histórias sempre tem um cruzamento com a Bíblia. Eu adoro a Bíblia. Gênesis é uma epopeia. Deus cria, destrói e cria o mundo de novo, isso só no primeiro livro.

A escritora Ana Paula Maia, bicampeã do prêmio São Paulo e autora da série do Globoplay "Desalma" Foto: Globo / Estevam Avellar / Globo/Estevam Avellar
A escritora Ana Paula Maia, bicampeã do prêmio São Paulo e autora da série do Globoplay "Desalma" Foto: Globo / Estevam Avellar / Globo/Estevam Avellar

Em tempo de “guerras culturais”, em que grupos ultraconservadores atuam contra determinadas temáticas, a autora diz não se sentir acuada por tais movimentos.

— Olha que os livros que escrevo não são cor-de-rosa. Se vierem (atacá-la nas redes sociais) , não posso fazer nada. Não vão fazer escândalo na minha casa, não sabem onde eu moro.

Em 2020, Ana Paula faz sua estreia como roteirista em “Desalma”, série que criou para o Globoplay. Nos dez episódios que escreveu sozinha, ela narra um drama sobrenatural na fictícia cidade de Brígida, uma colônia de imigrantes ucranianos no sul do Brasil.

—Veja só, estou nesse momento num país altamente evangélico e vou lançar uma série de bruxas. E não tem nenhum problema, minha mãe é evangélica e está contando os segundos para assistir. Não tem nenhum ato político, é só a vontade de contar uma história de bruxas — reafirma.

Haia (Cássia Kis) e de Roman (Nikolas Antunes) fazem ritual em cena da série 'Desalma', criada por Ana Paula Maia Foto: Globo/Estevam Avellar
Haia (Cássia Kis) e de Roman (Nikolas Antunes) fazem ritual em cena da série 'Desalma', criada por Ana Paula Maia Foto: Globo/Estevam Avellar

Uma das protagonistas da série, a atriz Maria Ribeiro sabe bem do entusiasmo da autora com o tema.

— Eu achava que a relação dela com o sobrenatural era puramente literária. Acontece que Ana Paula realmente acredita em bruxa, troca de alma e já acorda falando de filme de terror.

Com ainda Cássia Kis e Cláudia Abreu à frente, “Desalma” é também a primeira vez em que Ana concentra sua escrita em protagonistas femininas.

— Só me dei conta que estava escrevendo sobre mulheres muito tempo depois. Isso me fez perceber que escrever sobre homens na literatura não foi uma opção, foi algo que aconteceu, porque a paisagem pedia — diz ela, que se sente desobrigada a criar personagens mulheres e negras, como ela.

— Não tenho obrigação de absolutamente nada. Escrevo absolutamente aquilo que quero e gosto.

Ela também descarta retornar ao Rio de Janeiro. Há quatro anos, ela trocou a capital carioca por Curitiba.

— Não tenho alma de carioca, essa é a questão. Sou muito quieta. O Rio é muito solar, festivo. Eu não sou.

(Colaboraram Fabiano Ristow e Maria Ribeiro)