Exclusivo para Assinantes
Cultura Caetano Veloso

'Narciso em férias': Caetano foi preso por 'crime' que Noel Rosa cometeu

Grande revelação do filme é que músico foi parar na cadeia pelo simples fato de ser cantor e compositor popular
Caetano Veloso durante entrevista coletiva sobre seu afastamento do Festival da Canção em 1968 Foto: Arquivo / O GLOBO
Caetano Veloso durante entrevista coletiva sobre seu afastamento do Festival da Canção em 1968 Foto: Arquivo / O GLOBO

RIO — Caetano Veloso foi preso por um crime que Noel Rosa cometeu. Ou seja, um crime praticado pela música brasileira, que pelo visto ainda não prescrevera em 1969, embora ocorrido em 1929.

— Noel, há umas coisas aqui que não estão me agradando: ‘Agora vou mudar minha conduta...’ Repete isso.

Noel obedece.

— Essa música não pode ser publicada — interrompe Homero.

— Por que não?

— Porque isso não é samba, é o Hino Nacional Brasileiro. Os homens da censura não vão deixar. Além de proibir, podem até te prender. Não é permitido fazer brincadeiras com o Hino Nacional.

Depois de breve silêncio, Noel indaga, meio assustado:

— E agora?”

Sobre tudo: Releia colunas de Caetano Veloso no GLOBO

O flagrante do “crime” é reproduzido com detalhes por Carlos Didier e João Máximo em “Noel Rosa, uma biografia” a partir de descrições das testemunhas que estavam na casa da Rua Torres Homem, em Vila Isabel, naquela tarde do fim de 1929 — os compositores Braguinha e Almirante e o próprio maestro Homero Dornellas, que passava para a pauta o samba “Com que roupa?”, que Noel queria gravar para o carnaval de 30. Ajudado pelo maestro, depois do susto Noel alterou as notas iniciais do samba, que só seria gravado no ano seguinte, com imenso sucesso no carnaval de 31 e o crime de subverter o Hino devidamente ocultado (na prática, não no espírito).

O músico Noel Rosa, que costumava parodirar o Hino Nacional Foto: Arquivo / O GLOBO
O músico Noel Rosa, que costumava parodirar o Hino Nacional Foto: Arquivo / O GLOBO

Quarenta anos depois, também na Zona Norte, no batalhão de paraquedistas em Deodoro, quando se encontrava preso na cela de uma cadeia sem saber bem por quê, como se fosse Noel num flagrante tardio, Caetano é submetido ao interrogatório por um tal major Hilton: “Perguntado se sabe cantar o Hino Nacional responde que sim (...). Perguntado se sabe cantar ‘Tropicália’, responde que ‘sei’ porque é o autor e cantor dessa música. Perguntado se sabe cantar o Hino Nacional com a melodia da Tropicália responde ‘é impossível porque os versos do Hino Nacional são decassílabos e os versos de ‘Tropicália’ têm oito sílabas poéticas’.”

Noel nunca teria esse álibi: basta cantar a letra do “Com que roupa?” na melodia do Hino Nacional que se vê como cabe perfeitamente. Além disso, todos que conheciam Noel sabiam que ele costumava fazer paródias até pornográficas do Hino desde os tempos do Colégio São Bento, e solava sua melodia ao violão.

Essa fenda no espaço-tempo se abriu devido à talvez mais importante revelação histórica de “Narciso em férias” , documentário de Renato Terra e Ricardo Calil em cartaz no Globoplay, sobre o capítulo do livro de Caetano “Verdade tropical”, no qual o compositor destrincha as memórias do tempo em que ficou preso logo após o AI-5, entre dezembro de 68 e fevereiro de 69.

A partir do conteúdo do interrogatório, revelado pelo filme e lido pelo próprio Caetano entre risos nervosos e engasgos de engolir lágrimas, é comprovado que ele e Gilberto Gil de fato foram presos pela acusação de profanarem o Hino Nacional no show que fizeram em setembro de 1968 na boate Sucata. Só por isso, por cantar. O que nem cantaram.

No filme, Caetano revela que a prisão o fez um pouco mais supersticioso, ou pelo menos mais atento às coincidências, muitas delas musicais — como a de um vizinho de cela, que pediu que ele cantasse “Súplica”, a valsa que ele cantava em casa, horas antes de ser preso.

A coincidência em responder pelo “crime” de Noel talvez seja das mais impressionantes. Afinal, “Narciso em férias” é baseado na fala de Caetano, é literalmente “cinema falado”. “O cinema falado” é o nome do único filme dirigido por Caetano, com título tirado de um samba de... Noel, “Não tem tradução”.

Caetano Veloso em cena do documentário "Narciso em férias" Foto: VideoFilmes/divulgação / O GLOBO
Caetano Veloso em cena do documentário "Narciso em férias" Foto: VideoFilmes/divulgação / O GLOBO

Mas tudo transcende às coincidências. E talvez reflita o caráter profundamente subversivo da música brasileira, sempre perseguida e vigiada pelos reacionários de plantão. A denúncia que levou à prisão de Caetano e Gil partiu, por exemplo, de Randal Juliano, apresentador da TV Record, que exortou militares a tomarem providências quanto ao Hino supostamente cantado como paródia na Sucata. O mesmo Randal que no Festival da Record do ano anterior — retratado, ai as coincidências, no filme “Uma noite em 67”, dos mesmos diretores de “Narciso em férias” — perguntava a Caetano nos bastidores, com visível má vontade, o sentido que ele não via na letra de “Alegria alegria”, sendo humilhado por Caetano nas respostas.

Na verdade, os reacionários estavam certos. “Com que roupa?” era mais que uma subversão do Hino Nacional — Noel teria dito a um tio que queria retratar “o Brasil de tanga”, por causa da Crise de 29 e de sua pobreza estrutural —, mas o início da incorporação da arte dos negros e marginalizados à cultura oficial brasileira através do samba que havia acabado de conquistar o compositor branco. Naquela mesma tarde de 29, aliás, Almirante e o maestro Homero Dornellas (escondido sob o pseudônimo Candoca da Anunciação) fizeram o samba “Na Pavuna”, que seria a primeira gravação da história a ter percussão de samba, pura subversão.

“Tropicália”, por sua vez, com seu ritmo marcheado também era um hino brasileiro vocacional, querendo organizar movimentos, orientar o carnaval, inaugurar monumentos no Planalto Central dando vivas à Banda (do Chico Buarque, não a militar) e a uma “Carmen Miranda dada”, dadaísta, rebelde, sem sentido convencional. Subversivo, pois, coisa que foi percebida melhor pelo segundo oficial a interrogar Caetano, um capitão um pouco mais informado, que ao ouvir o compositor negar o “crime” da Sucata respondeu algo como: “Mas você é ingênuo ou acha que pode nos fazer de bobos?”

Bonequinho viu: https://oglobo.globo.com/rioshow/narciso-em-ferias-traz-relato-vivido-sobre-prisao-de-caetano-veloso-veja-critica-24626204

No futuro, o pai espiritual de Caetano, João Gilberto, cantaria de fato o Hino nos seus shows, todo editado, com nova harmonia, ainda mais bonito, com ênfase em alguns trechos — “Se o sol da liberdade em raios fúlgidos brilhou no céu da pátria neste instante” — subversivo.

A única canção composta por Caetano na prisão, “Irene”, sobre a saudade do riso da irmã mais nova, seria também no futuro incorporada a outro hino informal, “Meninas do Brasil”, de Moraes Moreira e Fausto Nilo: “Quando o povo brasileiro viu Irene dar risada...”. O que leva a crer que Caetano foi preso, sim, no lugar de Noel e de todos os subversivos da música brasileira pelo simples fato de ser cantor e compositor popular. Crime perigoso sempre que ressentidos e reacionários chegam ao poder. Afinal, “tudo aquilo que o malandro pronuncia, com voz macia, é brasileiro”. Como aliás cantou Noel (e Caetano citou).