'Nenhuma conversa sobre raça pode ignorar a branquitude', diz Claudia Rankine
Em 'Cidadã', professora da Universidade Yale lista pequenos episódios do racismo cotidiano para expor o papel da supremacia branca na formação da democracia americana
Ruan de Sousa Gabriel
31/01/2021 - 04:23
A poeta e ensaísta americana Claudia Rankine, autora de "Cidadã: uma lírica americana" (Jabuticaba) Foto: John D. and Catherine T. MacArthur Foundation / Divulgação
Quase no final de “Cidadã: uma lírica americana”, livro da premiada poeta e ensaísta Claudia Rankine, surgem duas páginas onde a expressão “em memória de” é repetida antes dos nomes de 30 homens e mulheres negros mortos pela polícia. “Cidadã” foi publicado nos Estados Unidos em 2014, mas, na edição brasileira, que chegou às livrarias no final do ano passado, aparece o nome de
George Floyd
, homem negro estrangulado por policial branco em 25 de maio de 2020, em Minneapolis, no Meio-Oeste americano, e cujo assassinato serviu de estopim para uma
explosão de protestos
antirracistas pelo mundo.
Numa conversa telefônica com O GLOBO, Claudia, que nasceu na Jamaica, em 1963, explica que, a cada nova edição de “Cidadã”, essas duas páginas são atualizadas e são incluídos nomes de pessoas negras mortas pela polícia recentemente. Ela estima que, desde 2014, tenha adicionado uns dez nomes à lista. Ela dá preferência a nomes que tenham saído nos jornais e dos quais o leitor há de se lembrar.
— Há muitos outros nomes que poderiam estar nessa lista — diz. — Os assassinatos de pessoas negras pela polícia não pararam de acontecer depois da conquista dos direitos civis
(nos anos 1960)
nem depois da primeira publicação desse livro. A violência policial é parte da vida dos pretos e dos pardos neste país.
Racismo cotidiano
Até o final do ano passado, Claudia era praticamente inédita no Brasil. Um trecho de “Cidadã” apareceu no “Anuário”, organizado pelo escritor Michel Laub, que a editora Todavia lançou em 2018. Um excerto do livro mais recente dela, “Just Us” (Só nós) saiu numa edição de 2019 da “serrote”, revista de ensaios do Instituto Moreira Salles (IMS). A Todavia vai publicar “Just Us” no segundo semestre e, para o ano que vem, promete “Don’t let me be lonely” (Não me deixe ser solitária).
Neil Peart, músico canadense e baterista do Rush, morreu em 7 de janeiro, por causa de um tumor no cérebro Foto: Ethan Miller / Reuters
Terry Jones, ator britânico, faleceu em 21 de janeiro aos 77 anos. A causa da morte foi uma rara demência Foto: Suzanne Plunkett / Reuters
Em 5 de fevereiro, o ator Kirk Douglas morreu aos 103 anos. A causa não foi revelada pela família Foto: AFP PHOTO/JIM RUYMEN
O ator e cineasta José Mojica Marins, mais conhecido como Zé do Caixão, faleceu em 19 de fevereiro, aos 83 anos, por causa de uma broncopneumonia Foto: André Sigwalt /
A cantora e atriz Adelaide Chiozzo, famosa intérprete de 'Beijinho doce', morreu aos 88 anos, em 4 de março. A causa do falecimento foi uma tromboembolia pulmonar Foto: Berg Silva /
Um dos maiores pianistas da história do jazz, McCoy Tyner faleceu no dia 6 de março. A causa não foi divulgada. Foto: Leonardo Aversa : Leo Aversa / Leonardo Aversa / Agencia O Globo
O poeta e letrista Jorge Salomão faleceu, aos 73 anos, no dia 7 de março, por complicações de uma úlcera no duodeno Foto:
Aos 81 anos, o cantor americano Kenny Rogers faleceu de causas naturais em 20 de março Foto: SUZANNE CORDEIRO / AFP
Um dos criadores de Asterix e Obelix, o francês Albert Uderzo morreu aos 92 anos em decorrência de uma crise cardíaca, no dia 24 de março Foto: Yves Herman /
O artista plástico e desenhista Daniel Azulay faleceu em 27 de março aos 72 anos. Ele estava se tratando se leucemia e contraiu Covid-19. Foto: Rodrigo Berthone /
No dia 30 de março, morreu o sambista baiano Riachão, aos 98 anos. Segundo a família, morte se deu por "causas naturais". Foto: Daniela Carvalho /
Bill Withers, mestre da soul music e autor de 'Ain't no sunshine', morreu no dia 3 de abril, aos 81, por causa de problemas no coração Foto:
O músico Moraes Moreira, um dos fundadores dos Novos Baianos, morreu aos 72 anos, no dia 13 de abril, por causa de um infarto fulminante Foto: Ana Branco / Agência O Globo
Irrfan Khan, ator indiano famoso por 'Quem quer ser um milionário?' e 'As aventuras de Pi', morreu aos 53 anos, em 29 de abril. Ele foi acometido por um câncer raro Foto: PHILIPPE LOPEZ / AFP
Um dos maiores autores brasileiros, Rubem Fonseca se foi em 15 de abril, por causa de um infarto. Ele tinha 94 anos. Foto:
O ator Flávio Migliaccio foi encontrado morto no dia 4 de maio, em seu sítio, aos 85 anos. Foto: Leo Martins / Agência O Globo
O compositor e escritor Aldir Blanc, faleceu, em decorrência de Covid-19, aos 73 anos, no dia 4 de maio. Foto: Leo Martins / Agência O Globo
Little Richard, músico norte-americano, faleceu aos 87 anos, em 9 de maio. Foto: STEPHANE DE SAKUTIN / AFP
Gilberto Dimenstein, escritor e jornalista, faleceu em 29 de maio, aos 63, em decorrência de um câncer no pâncreas Foto: Bruno Santos/Folhapress /
Cantora gospel Fabiana Anastácio morreu de Covid-19, no dia 4 de junho, aos 45 anos. Foto:
O ator Leonardo Villar, que protagonizou o filme 'O pagador de promessas', morreu aos 96 anos, em 3 de julho. Ele teve uma parada cardíaca Foto: João Miguel Júnior / TV GLOBO
Em 4 de julho, morreu Martha Rocha, modelo e Miss Brasil 1954, por causa de insuficiência respiratória seguida de infarto Foto: Niels Andreas /
Naya Rivera, famosa pela série 'Glee', morreu por afogamento no dia 8 de julho, aos 33 anos. Ela estava num passeio de barco com o filho quando acabou desaparecendo nas águas de um lago Foto: VALERIE MACON / AFP
Atriz Kelly Preston, mulher de John Travolta, morreu aos 57 anos, no dia 12 de julho. Ela tinha câncer. Foto: Regis Duvignau / Reuters
Olivia de Havilland morreu aos 104 anos, no dia 26 de julho. Ela ficou famosa pelo filme 'E o vento levou...' Foto: - / AFP
O inglês Alan Parker, diretor de 'The Wall', 'O expresso da meia-noite' e 'Mississippi em chamas', morreu aos 76 anos, após uma longa doença, no dia 31 de julho Foto: Darrin Zammit Lupi / Reuters
A atriz Chica Xavier morreu no dia 8 de agosto, aos 88 anos, em decorrência de um câncer. Foto: Gustavo Stephan / O Globo
O produtor musical Arnaldo Saccomani morreu aos 71 anos, por causa uma rara doença renal, no dia 27 de agosto Foto: ROBERTO NEMANIS / Divulgação
Chadwick Boseman, famoso por seu papel em 'Pantera negra', morreu aos 43 anos, no dia 28 de agosto. A causa da morte foi um câncer de cólon. Foto: 'VALERIE MACON / AFP
Gerson King Combo, estrela da soul music brasileira, faleceu em 22 de setembro, aos 76 anos. A causa da morte foi complicações da diabetes. Foto:
Quino, cartunista argentino criador da Mafalda, morreu no dia 30 de setembro, aos 88 anos, por conta de um derrame Foto: ALEJANDRO PAGNI / AFP
Eddie Van Halen, guitarrista da banda Van Halen, morreu de câncer aos 65 anos, no dia 6 de outubro Foto: Ethan Miller / AFP
O ator Cecil Thiré, que sofria de Mal de Parkinson, morreu aos 77 anos, no dia 9 de outubro Foto:
Atriz Jane Di Castro morreu de câncer, aos 73 anos, no dia 23 de outubro Foto: Leo Martins / Agência O Globo
O ator britânico Sean Connery, o mais famoso James Bond, morreu aos 90 anos, dormindo em casa, no dia 31 de outubro. Foto: Agência O Globo
Tom Veiga, intérprete do personagem Louro José, do 'Mais Você', morreu no dia 1 de novembro, vítima de AVC. Ela tinha 47 anos Foto:
O chargista Lan morreu de pneumonia, aos 95 anos, no dia 5 de novembro Foto: André Teixeira / O Globo
Cantora e compositora, Vanusa morreu aos 73 anos no dia 8 de novembro. Ela estava internada por causa de um quadro de anemia e pneumonia Foto: Divulgação
O jornalista Fernando Vanucci morreu, aos 69 anos, por problemas cardíacos, no dia 24 de novembro Foto: Reprodução /facebook
O ator Eduardo Galvão morreu no dia 7 de dezembro, de Covid-19 Foto: Raphael Dias/TV Globo
Ubirany, um dos líderes do Fundo de Quintal, morreu por causa de Covid-19 no dia 11 de dezembro. Ele tinha 80 anos Foto: Reprodução
César Villela, o designer da bossa nova, morreu aos 90 anos, no dia 11 de dezembro, por causa de uma pneumonia Foto: Marco Antônio Cavalcanti / O Globo
O escritor John Le Carré, de 'O espião que sabia demais', morreu aos 89 anos, por causa de uma pneumonia, no dia 13 de dezembro Foto: Divulgação
Paulinho, vocalista e percussionista do Roupa Nova, morreu de Covid-19, aos 68 anos, no dia 14 de dezembro Foto: Reprodução / Instagram
A atriz Nicette Bruno morreu aos 87 anos, por complicações da Covid-19, no dia 20 de dezembro Foto: Paula Kossatz / Divulgação
Cantor sertanejo Matheus, dupla de Lucas, morreu de Covid-19 no dia 23 de dezembro. Ele tinha 57 anos Foto: Reprodução
Segundo Claudia, tanto “Cidadã” quanto “Just Us”, são repositórios de seus “interesses, obsessões e preocupações”, como o papel da supremacia branca na construção da democracia americana. Nos dois livros, Claudia descreve situações cotidianas, algumas das quais aconteceram com ela ou com amigos próximos, em que o racismo irrompe, seja num gesto ou numa frase. É o amigo branco que não entende por que ela se incomoda quando ele usa um termo racista para reclamar de adolescentes barulhentos na cafeteria. A colega que diz que seu filho não consegue entrar na universidade porque não é cotista. Ou a psicóloga, especializada em tratamento de trauma, que confirma a consulta por telefone mas quando vê a paciente negra chegar grita “a plenos pulmões”: “O que você está fazendo no meu quintal?”.
Em “Just Us”, ela descreve interações com pessoas brancas em jantares na casa de amigos e narra um experimento: aproveitar o tempo perdido em saguões de aeroporto e as viagens de avião para perguntar a homens brancos o que eles pensavam de seus privilégios. Ao descrever interações aparentemente banais, Claudia quis revelar como o racismo estrutural não conta apenas com as instituições para se perpetuar, mas também com os indivíduos.
— As mesmas pessoas que soltam comentários aparentemente inofensivos em jantares e encontros causais têm atitudes semelhantes sem seus empregos, no banco onde decidem quem recebe um empréstimo, no tribunal onde decidem quem é inocente — explica. — Instituições são feitas de pessoas. E o uso que as pessoas fazem da linguagem é indicativo do que elas também fazem quando representam instituições.
Imaginário e branquitude
Em “Cidadã”, a sucessão de nomes de pessoas negras mortas pela polícia é interrompida por três versos: “porque homens brancos não conseguem / policiar sua imaginação / pessoas negras estão morrendo”. O imaginário é uma das obsessões de Claudia. Em 2017, ela usou o dinheiro do prêmio que ganhou da Fundação John D. and Catherine T. MacArthur, a famosa “bolsa para gênios” para fundar o Instituto do Imaginário Racial, cujo objetivo é estudar a raça como o que ela de fato é “um conceito inventado que, no entanto, opera com força extraordinária em nossas vidas diárias, limitando nossos movimentos e imaginações”. Para Claudia, a violência racista também passa pela imaginação.
— A superioridade dos brancos é parte do nosso imaginário. Está em toda a cultura. É uma ideia tão arraigada que faz com que os negros não sejam vistos como pessoas e possam ser mortos por policiais que nem sequer questionam o que estão fazendo — diz. — Dizem que os policiais se sentem ameaçados por negros desarmados e acabam atirando. Mas no dia 6 de janeiro, quando milhares invadiram o Capitólio, a polícia conseguiu se controlar. É como se os policiais não soubessem reagir à presença de pessoas negras sem atacá-las. Há um desprezo pela vida negra neste país.
A britânica Bernardine Evaristo, que abriu a Flip virtual em 2020, é autora do premiado "Garota, mulher, outras" (Companhia das Letras) Foto: Reprodução / Divulgação
Segundo Itamar Vieira Junior, o livro, que acompanha 12 mulheres negras no Reino Unido, tem "um projeto estético e de trama transformador" Foto: Reprodução
O escritor americano James Baldwin, cuja ficção e não ficção vem sendo publicada no Brasil pela Companhia das Letras Foto: Reprodução / Divulgaçãp
Para Itamar Vieira Junior, "Notas de um filho nativo", livro de ensaios de James Baldwin é "uma obra-prima" Foto: Reprodução / Divulgação
O psiquiatra e filósofo decolonial Frantz Fanon, autor de "Pele negra, máscaras brancas", livro mais vendido em 2020 pela editora Ubu Foto: Reprodução / Divulgação
"Pele negra, máscaras brancas" foi um dos primeiros livros a se debruçar sobre os efeitos psicológicos do racismo Foto: Reprodução / Divulgação
O escritor gaúcho José Falero, que estreou no romance no final de 2020, com "Os supridores" (Todavia) Foto: Reprodução / Todavia
Com uma narrativa ágil, politizada e divertida, "Os supridores" acompanha dois jovens da periferia que escolhem vender maconha de qualidade para superar a pobreza Foto: Reprodução / Divulgação
O escritor carioca radicano em Porto Alegre Jeferson Tenório, autor de "O avesso da pele" (Companhia das Letras), um dos romances mais elogiados de 2020 Foto: Carlos Macedo / Divulgação
Com uma linguagem simples e lírica, "O avesso da pele" acompanha a tentativa de um filho de reconstituir a vida do pai, marcada pelo racismo Foto: Reprodução / Divulgação
Danez Smith, poeta e performer não binário que participou da Flip virtual em 2020, autor de "Não diga que estamos mortos" (Bazar do Tempo) Foto: David Hong / Divulgação
Os poemas de "Não diga que estamos mortos" refletem sobre o que significa ter um corpo negro ameaçado pela violência e pelo vírus da aids Foto: Reprodução / Divulgação
Claudia também oferece um curso intitulado “Construção da branquitude” na Universidade Yale,
— Uso “branquitude” como sinônimo de supremacia branca. Nos anos 1980, escritores como James Baldwin e Toni Morrison escreveram sobre branquitude. Depois, a ênfase no tema diminui — explica. — No Instituto do Imaginário Racial, queremos entender como este país foi a supremacia fundou este país e como a pele clara ainda é uma fonte de poder inquestionável. Nenhuma conversa sobre raça pode ignorar a branquitude.
Ao longo de “Cidadã”, uma frase da antropóloga e cineasta Zora Neale Hurston é repetida como algumas vezes, como se fosse um refrão: “Eu me sinto mais negra quando jogada contra um fundo extremamente branco”. Pergunta se sente assim ao circular por fundos tão brancos, como a Yale e a cena literária americana, Claudia responde que tem consciência de que lecionanuma universidade que legitimou a escravidão. E ressaltou a importância de trabalhar para desmantelar a supremacia branca de dentro de uma das instituições que ajudou a formulá-la e botá-la em prática.
— A construção da supremacia branca foi interseccional: cultural, política, social. Ela não será destruída da noite para o dia. A caminhada é longa, mas tenho esperança — afirma.
Capa de "Cidadã: uma lírica americana", da poeta e ensaísta Claudia Rankine, publicado pela Jabuticaba Foto: Reprodução / Divulgação