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Cultura

'Nenhuma conversa sobre raça pode ignorar a branquitude', diz Claudia Rankine

Em 'Cidadã', professora da Universidade Yale lista pequenos episódios do racismo cotidiano para expor o papel da supremacia branca na formação da democracia americana
A poeta e ensaísta americana Claudia Rankine, autora de "Cidadã: uma lírica americana" (Jabuticaba) Foto: John D. and Catherine T. MacArthur Foundation / Divulgação
A poeta e ensaísta americana Claudia Rankine, autora de "Cidadã: uma lírica americana" (Jabuticaba) Foto: John D. and Catherine T. MacArthur Foundation / Divulgação

Quase no final de “Cidadã: uma lírica americana”, livro da premiada poeta e ensaísta Claudia Rankine, surgem duas páginas onde a expressão “em memória de” é repetida antes dos nomes de 30 homens e mulheres negros mortos pela polícia. “Cidadã” foi publicado nos Estados Unidos em 2014, mas, na edição brasileira, que chegou às livrarias no final do ano passado, aparece o nome de George Floyd , homem negro estrangulado por policial branco em 25 de maio de 2020, em Minneapolis, no Meio-Oeste americano, e cujo assassinato serviu de estopim para uma explosão de protestos antirracistas pelo mundo.

Numa conversa telefônica com O GLOBO, Claudia, que nasceu na Jamaica, em 1963, explica que, a cada nova edição de “Cidadã”, essas duas páginas são atualizadas e são incluídos nomes de pessoas negras mortas pela polícia recentemente. Ela estima que, desde 2014, tenha adicionado uns dez nomes à lista. Ela dá preferência a nomes que tenham saído nos jornais e dos quais o leitor há de se lembrar.

— Há muitos outros nomes que poderiam estar nessa lista — diz. — Os assassinatos de pessoas negras pela polícia não pararam de acontecer depois da conquista dos direitos civis (nos anos 1960) nem depois da primeira publicação desse livro. A violência policial é parte da vida dos pretos e dos pardos neste país.

Racismo cotidiano

Até o final do ano passado, Claudia era praticamente inédita no Brasil. Um trecho de “Cidadã” apareceu no “Anuário”, organizado pelo escritor Michel Laub, que a editora Todavia lançou em 2018. Um excerto do livro mais recente dela, “Just Us” (Só nós) saiu numa edição de 2019 da “serrote”, revista de ensaios do Instituto Moreira Salles (IMS). A Todavia vai publicar “Just Us” no segundo semestre e, para o ano que vem, promete “Don’t let me be lonely” (Não me deixe ser solitária).

Segundo Claudia, tanto “Cidadã” quanto “Just Us”, são repositórios de seus “interesses, obsessões e preocupações”, como o papel da supremacia branca na construção da democracia americana. Nos dois livros, Claudia descreve situações cotidianas, algumas das quais aconteceram com ela ou com amigos próximos, em que o racismo irrompe, seja num gesto ou numa frase. É o amigo branco que não entende por que ela se incomoda quando ele usa um termo racista para reclamar de adolescentes barulhentos na cafeteria. A colega que diz que seu filho não consegue entrar na universidade porque não é cotista. Ou a psicóloga, especializada em tratamento de trauma, que confirma a consulta por telefone mas quando vê a paciente negra chegar grita “a plenos pulmões”: “O que você está fazendo no meu quintal?”.

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Em “Just Us”, ela descreve interações com pessoas brancas em jantares na casa de amigos e narra um experimento: aproveitar o tempo perdido em saguões de aeroporto e as viagens de avião para perguntar a homens brancos o que eles pensavam de seus privilégios. Ao descrever interações aparentemente banais, Claudia quis revelar como o racismo estrutural não conta apenas com as instituições para se perpetuar, mas também com os indivíduos.

— As mesmas pessoas que soltam comentários aparentemente inofensivos em jantares e encontros causais têm atitudes semelhantes sem seus empregos, no banco onde decidem quem recebe um empréstimo, no tribunal onde decidem quem é inocente — explica. — Instituições são feitas de pessoas. E o uso que as pessoas fazem da linguagem é indicativo do que elas também fazem quando representam instituições.

Imaginário e branquitude

Em “Cidadã”, a sucessão de nomes de pessoas negras mortas pela polícia é interrompida por três versos: “porque homens brancos não conseguem / policiar sua imaginação / pessoas negras estão morrendo”. O imaginário é uma das obsessões de Claudia. Em 2017, ela usou o dinheiro do prêmio que ganhou da Fundação John D. and Catherine T. MacArthur, a famosa “bolsa para gênios” para fundar o Instituto do Imaginário Racial, cujo objetivo é estudar a raça como o que ela de fato é “um conceito inventado que, no entanto, opera com força extraordinária em nossas vidas diárias, limitando nossos movimentos e imaginações”. Para Claudia, a violência racista também passa pela imaginação.

— A superioridade dos brancos é parte do nosso imaginário. Está em toda a cultura. É uma ideia tão arraigada que faz com que os negros não sejam vistos como pessoas e possam ser mortos por policiais que nem sequer questionam o que estão fazendo — diz. — Dizem que os policiais se sentem ameaçados por negros desarmados e acabam atirando. Mas no dia 6 de janeiro, quando milhares invadiram o Capitólio, a polícia conseguiu se controlar. É como se os policiais não soubessem reagir à presença de pessoas negras sem atacá-las. Há um desprezo pela vida negra neste país.

Claudia também oferece um curso intitulado “Construção da branquitude” na Universidade Yale,

— Uso “branquitude” como sinônimo de supremacia branca. Nos anos 1980, escritores como James Baldwin e Toni Morrison escreveram sobre branquitude. Depois, a ênfase no tema diminui — explica. — No Instituto do Imaginário Racial, queremos entender como este país foi a supremacia fundou este país e como a pele clara ainda é uma fonte de poder inquestionável. Nenhuma conversa sobre raça pode ignorar a branquitude.

Ao longo de “Cidadã”, uma frase da antropóloga e cineasta Zora Neale Hurston é repetida como algumas vezes, como se fosse um refrão: “Eu me sinto mais negra quando jogada contra um fundo extremamente branco”. Pergunta se sente assim ao circular por fundos tão brancos, como a Yale e a cena literária americana, Claudia responde que tem consciência de que lecionanuma universidade que legitimou a escravidão. E ressaltou a importância de trabalhar para desmantelar a supremacia branca de dentro de uma das instituições que ajudou a formulá-la e botá-la em prática.

— A construção da supremacia branca foi interseccional: cultural, política, social. Ela não será destruída da noite para o dia. A caminhada é longa, mas tenho esperança — afirma.

Capa de "Cidadã: uma lírica americana", da poeta e ensaísta Claudia Rankine, publicado pela Jabuticaba Foto: Reprodução / Divulgação
Capa de "Cidadã: uma lírica americana", da poeta e ensaísta Claudia Rankine, publicado pela Jabuticaba Foto: Reprodução / Divulgação

Serviço:

“Cidadã: uma lírica americana”

Autora: Claudia Rankine. Tradução: Stephanie Borges. Editora: Jabuticaba. Páginas: 184. Preço: R$ 50.