Cultura

No 13 de Maio, Fundação Palmares publica artigos questionando Zumbi e o movimento negro e gera reação

Especialistas veem como provocação argumentos como 'se existe uma Consciência Negra no Brasil, também deve existir uma branca e outra indigenista'
Artigo contra Zumbi no site da Fundação Palmares Foto: Reprodução
Artigo contra Zumbi no site da Fundação Palmares Foto: Reprodução

RIO — O 13 de Maio, data da assinatura da Lei Áurea, que encerrou oficialmente a escravidão no Brasil em 1888, vem sendo tema de debate há anos entre o movimento negro pelo protagonismo dado historicamente à Princesa Isabel em um processo derivado de lutas e sublevações anteriores, levadas a cabo por escravizados e seus descendentes.

A controvérsia sobre a data ganhou um novo elemento nesta quarta-feira, quando a Fundação Palmares publicou artigos relacionados ao tema, com destaque em seu site. Um deles, "Por que lembrar, em 13 de maio, a Princesa Isabel do Brasil?", de Laércio Fidelis Dias (diretor do Departamento de Proteção ao Patrimônio Afro-brasileiro da Fundação), aborda justamente a figura da princesa que assinou a Lei Áurea. Outros dois, "Zumbi foi um herói?", da professora Mayalu Felix, e "Zumbi e a Consciência Negra – Existem de verdade?", do professor Luiz Gustavo dos Santos Chrispino, levantam supostas inconscistências do personagem histórico, cuja data em que teria sido assassinado, 20 de novembro, passou a ser celebrada como o Dia da Consciência Negra.

No artigo mais incisivo sobre o tema, Chrispino aponta um processo que caracteriza como "endeusamento de Zumbi", que, segundo o texto, se inicia em junho de 1978, quando o feirante negro Robson Silveira da Luz é morto na Delegacia de Polícia de Guaianazes, em São Paulo.

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"Em 7 de julho de 1978, na escadaria do Teatro Municipal de São Paulo reuniram-se quase duas mil pessoas para protestar contra o fato. Aquele era o momento de nascimento do chamado Movimento Negro Unificado – MNU. Iniciava-se aí essa corrente de Movimento Negro, precisando apenas de um 'Símbolo', um 'Ícone' que pudesse dar cara a tal movimento que já começava sob o viés e influência do processo Marxista Cultural de separação social. Começava aí a Luta Esquerdista usando o povo negro como massa de manobra", destaca o texto.

Sérgio Camargo, presidente da Fundação Palmares Foto: Pablo Jacob / Agência O Globo
Sérgio Camargo, presidente da Fundação Palmares Foto: Pablo Jacob / Agência O Globo

Abordando uma "separação social que interessa apenas à política esquerdizante", o autor remete ao "verdadeiro pensamento e visão popular do brasileiro, que não é Esquerdista, nem de longe, pois nosso povo tem uma índole, uma visão amistosa, pacata, alegre, festeira dentro deste amalgama que é a nossa gente miscigenada – marca pontual de nosso povo, ser a mistura do Branco, Negro e Índio de forma natural".

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Desde a nomeação do jornalista Sérgio Camargo para a Fundação Palmares pelo ex-secretário da Cultura, Roberto Alvim, a instituição vem sendo questionada por setores do movimento negro pela postura pública de seu presidente. Camargo, que chegou a ter a nomeação suspensa pela Justiça, já defendeu a extinção do movimento negro , o fim do feriado da Consciência Negra e atacou personalidades como Taís Araújo,  Lázaro Ramos e a vereadora Marielle Franco, assassinada em março de 2018.

Camargo teve sua indicação sustentada pelo próprio Jair Bolsonaro , e chegou a confrontar publicamente a secretária especial da Cultura, Regina Duarte , a quem a Palmares está subordinada. Entre suas declarações mais polêmicas, ele afirmou que no Brasil existe um racismo "Nutella" , uma tese também defendida no artigo de Chrispino em trechos como: " "Fortalece-se então tal Movimento Negro, que vinha copiando o processo de protestos do movimento negro norte americano, onde o racismo é, de longe, muito maior e pontual que o nosso (...)".

Durante o dia, Camargo postou uma série de mensagens em seu perfil no Twitter enaltecendo a Princesa Isabel e atacando Zumbi, descrito por ele como "herói da esquerda racialista; não do povo brasileiro".  Ele também rebateu tuítes com reações às publicações, como o da deputada federal Talíria Petrone (PSOL– RJ).

Citando a Lei  lei 12.519/2011, que instituiu o Dia Nacional da Consciência Negra, o artigo de Chrispino questiona: "Se existe uma Consciência Negra no Brasil, também deve existir uma branca e outra indigenista, coisas que não existem". Na conclusão, o autor considera que "falar de Zumbi e de Consciência Negra é algo bastante subjetivo (...) pelo fato de Zumbi ser um personagem moldado num imaginário de um movimento social – Movimento Negro – e com isso, ser uma incógnita, para construir a imagem de um grande líder, que lutava pela liberdade dos negros... Será? Se for assim, Consciência Negra é outra incógnita, visto que se observarmos as gritarias de que negros são na maioria favelados, pobres etc. lembremos que nas favelas, não moram apenas negros".

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Organizadora do "Dicionário da escravidão e liberdade" (2018), junto com Flávio dos Santos Gomes, a historiadora Lilia Moritz Schwarcz identifica a publicação dos artigos como mais uma provocação a partir de uma narrativa ideológica da história.

— A existência de Palmares e seus líderes é confirmada por uma série de relatos e documentos, deixados inclusive pela repressão colonial. Isso não é uma questão de esquerda ou direita, são fatos históricos — destaca  Lilia. — Basta comparar com Tiradentes, cujo perfil que conhecemos hoje foi construído no final da monarquia e início da República. Por que ninguém questiona a sua representação histórica da mesma forma que os líderes negros são questionados?

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Para Laurentino Gomes, autor de "Escravidão – Vol. 1: Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares" (2019), o que mais preocupa é a escolha da data para a publicação dos artigos.

— O fato de Zumbi ter uma dimensão mitológica e ser uma figura controversa já vem sendo debatido há tempos, não há nenhuma novidade ali. Também não é uma questão de endeusá-lo ou de negar a importância da Princesa Isabel, ambos são personagens complexos que não podem ser tratados de maneira rasa – observa o historiador. — O que é lamentável é a escolha de um dia tão sensível para a memória dos afrodescententes brasileiros para uma tentativa deliberada de se destruir um símbolo da sua luta. Isto não é um convite à reflexão, é só uma provocação.

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Doutor em Semiótica e Linguística pela USP e babalorixá, Sidnei Nogueira compara as disputas narrativas recentes a uma redoma colocada sobre o país, que não permite que as discussões avancem.

— Estas provocações não têm nada de ingênuas, elas criam com muita astúcia uma gaiola semiológica, recorrendo a narrativas que mesmo seus autores sabem não ser reais — frisa o pesquisador, que coordena o Ile Ara (Instituto Livre de Estudos Avançados em Religiões Afro-brasileiras). — Para sair desta armadilha, não podemos usar as mesmas armas do inimigo, recorrer ao discurso do ódio. É preciso falar menos "de" e "para" eles, e falar mais "com" a gente.