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Cultura Coronavírus

Teatro pós-Covid: atores com máscaras e prevalência de monólogos

Futuro das artes cênicas ainda é um enigma, apontam produtores e artistas, que preveem redução de assentos nas plateias e retomada de arenas abertas
O Teatro XP Investimentos: sala vazia e fechada Foto: Dhani Accioly Borges / Divulgação
O Teatro XP Investimentos: sala vazia e fechada Foto: Dhani Accioly Borges / Divulgação

A despeito dos palcos inabitados e das plateias silenciosas, uma questão se impõe no meio teatral: e o futuro, como será? Assim como outros setores atingidos pelos efeitos da pandemia do novo coronavírus, o teatro, essencialmente uma arte do encontro, também busca respostas para o enigma difícil. Mas não existe uma certeza capaz de sanar todas as angústias.

Nesta segunda-feira (18/5), a Áustria se torna um dos primeiros países a liberar ensaios de companhias, mediante uma série de restrições para minimizar a transmissão da Covid-19 : os atores só poderão trabalhar afastados uns dos outros por ao menos 1 metro, com máscaras caso se aproximem, e a sala apenas poderá acolher uma pessoa por 10 metros quadrados de espaço.

Cultura pós-Covid: como serão os shows depois da pandemoa

As medidas, igualmente adotadas pela Alemanha, não são bem recebidas por artistas europeus, e provocam receio entre brasileiros. Afinal, é possível realizar teatro num contexto de limitações ao contato corporal, o principal instrumento do ofício cênico?

Na minuta de um arquivo que vem sendo preparado pelo governo de São Paulo, ao qual o GLOBO teve acesso, a retomada dos eventos de teatro, dança e música — ainda sem data estabelecida — prevê diversas diretrizes, como: distância de 1,5 metro entre pessoas a qualquer tempo; uso de máscaras no palco (os artistas só poderão retirá-las “quando for absolutamente necessário”); proibição do compartilhamento de objetos; realização de testes médicos a cada 30 dias com os funcionários; medição de temperatura corporal diariamente; e limpeza semanal dos sistemas de ar-condicionado.

— Claro que precisaremos inventar novas formas de estar juntos. Mas acredito que a pandemia ressuscitará o teatro, ao invés de matá-lo — argumenta Bia Lessa.

A diretora preparava uma montagem inédita da ópera “Aida”, de Verdi, com cerca de 150 bailarinos, atores e cantores, além de orquestra. A dez dias da estreia, no Teatro Municipal de São Paulo, os ensaios foram interrompidos. A expectativa é que o trabalho seja retomado em setembro, data que se mantém à vista de brasileiros e americanos, inclusive na Broadway, em Nova York.

— Teremos que readaptar tudo. Como apresentar “Romeu e Julieta” sem que eles se toquem, se beijem? — exemplifica a diretora. — Isso é belo, porque nos obriga a dar um passo rumo a uma nova estética e a uma nova ética. Mas essas formas têm que carregar a força do encontro ao vivo. A gente veio ao mundo para abraçar, lamber, comer, apertar. Não se trata de criar novas tecnologias. Trata-se de um movimento interno e profundo na própria linguagem.

O cenário de 'Aida', ópera que ganharia montagem dirigida por Bia Lessa, segue montado no Teatro Municipal de São Paulo Foto: Acervo pessoal
O cenário de 'Aida', ópera que ganharia montagem dirigida por Bia Lessa, segue montado no Teatro Municipal de São Paulo Foto: Acervo pessoal

Enquanto não for criada uma vacina para a Covid-19, produtores apostam numa prevalência de monólogos e peças com elenco reduzido. Muitos acreditam numa possível valorização de estruturas de arena a céu aberto, além de uma extensa ressignificação das performances de rua.

Gestores do Teatro Prudential, o antigo Teatro Manchete , na Glória, já providenciam uma ligeira mudança no uso do espaço. No próximo semestre, cadeiras devem ser posicionadas na parte externa do edifício: como ali o fundo do palco é retrátil, os artistas passarão a se apresentar para uma nova plateia, posicionada fora do recinto. A quantidade de assentos sofreria uma queda de mais de 70% em relação ao número original da casa.

— Essa deve ser a forma de reaquecermos o mercado — declara Aniela Jordan, uma das sócias do empreendimento capitaneado pela produtora Aventura Entretenimento, que também administra o Teatro Riachuelo. — Temos que inventar ideias, e queremos produzir musicais ao ar livre, possivelmente na Cidade das Artes. Mas a logística de montagem das estruturas seria lenta, e precisaríamos de patrocínio. Não vai dar para contar com o retorno da bilheteria.

A verdade é que, durante as primeiras fases de reabertura, as contas dificilmente fecharão. Se os protocolos internacionais servirem de modelo, apenas uma média de 30% dos lugares de cada teatro poderão ser ocupados — e com poltronas previamente definidas aos espectadores, para que o distanciamento se cumpra.

A fachada do Teatro Prudential, na Glória: fundo do palco (na foto) é retrátil e se abre para área externa Foto: Divulgação
A fachada do Teatro Prudential, na Glória: fundo do palco (na foto) é retrátil e se abre para área externa Foto: Divulgação

A realidade será mais grave em salas independentes, normalmente menores. Em Londres, casas com plateia pequena já anunciaram que só estarão aptas a funcionar em 2021.

— As perspectivas são precárias, porque as despesas fixas vão se manter, apesar da redução das capacidades —aponta Mário Bortolotto, responsável pelo Teatro e Bar Cemitério de Automóveis, em São Paulo, com apenas 32 assentos.

Sem patrocínio ou financiamento público, os diminutos Teatro Poeira e Teatro Poeirinha, administrados por Marieta Severo e Andréa Beltrão, seguem à espera de orientações mais claras, sem cravar datas para um retorno.

— O panorama geral é muito obscuro. Só sabemos que vamos reabrir o teatro, com certeza — afirma Andréa.

Enquanto o terceiro sinal não soa, artistas migram para a internet. Na próxima quinta-feira, o Congresso votará uma lei emergencial que propõe, entre outras medidas, o lançamento de editais para atividades em redes sociais.

Certamente, o destino do teatro não está desenhado na web — e essa opinião tem sido algo unânime entre técnicos, produtores e artistas. Impossível, porém, é desconsiderar o vasto terreno virtual como um tablado provisório.

— Estamos sufocados, sem muita saída, mas precisamos entender o tempo atual. E a “tele-presença” não deixa de ser presença —opina Ivam Cabral, do grupo Os Satyros , há três décadas em atividade, e agora em produção numa plataforma especialmente criada para a internet. — Mas existe uma nova questão: teatro na internet é mesmo teatro?

Nomes da área prestam mais depoimentos

Eduardo Barata, presidente da APTR

"Enquanto não tivermos uma vacina contra a Covid-19, a tendência é que os teatros sigam uma série de restrições. Teremos que improvisar de algum jeito, com espaçamento entre os espectadores, diminuição da plateia, uso de máscaras, oferta de álcool em gel na entrada... A grande questão, porém, é a seguinte: o público irá ao teatro dessa forma? As artes cênicas vivem essencialmente de concentração de pessoas! Como falar de amor sem demonstrar afeto em cena? Como manter uma boa emissão do som com as máscaras na frente da boca? E para os atores e espectadores que usam óculos, as lentes ficarão embaçadas ao longo do espetáculo? São perguntas do dia, mas fundamentais para entendermos esse novo mundo, essa nova ordem. Todos os protocolos internacionais têm limitado o teatro de existir em sua forma total. Por isso, talvez a atividade tenha que se dar de outras maneiras, e em outros lugares que não apenas o espaço teatral. Mas ainda não sabemos como monetizar esse novo formato. O poder público precisa olhar para essas formas intermediárias no espaço virtual, com incentivos que garantam a sobrevivência financeira e a cadeia produtiva de nosso segmento".

Rodrigo Portella, diretor

"Algo novo vai surgir. Mas esse algo novo talvez não seja tão novo assim, sabe? Penso nas muitas experiências interessantes no campo da performance que têm se debruçado sobre a relação entre a presença física em contraponto com o virtual. Quando nos comunicamos virtualmente, estamos presentes. Por outro lado, às vezes a presença física não significa 'presença' necessariamente. Portanto, penso muito no significado de 'presença', e de que maneira podemos reformular esse conceito. Como nos reinventaremos dentro de uma nova normalidade? Faremos teatro com o público ao ar livre ou com os espectadores em cabines? Promoveremos outros tipos de experiências, como jogos em que os espectadores possam se mover por si mesmos na cidade? Intuo que haverá uma consolidação entre algo que a turma da performance já faz e o teatro. Aquele velho teatro que a gente conhece há séculos deve mudar de cara e de forma".

Luiz Guilherme Niemeyer, sócio do Teatro XP Investimentos

"As novas tecnologias serão incorporadas pelo teatro, e o entretenimento presencial certamente passará por mudanças sanitárias. Tanto que, nas últimas semanas, nasceu o termo 'bio-entretenimento', que propõe uma ressignificação de ambientes como salas de teatro. A maior dificuldade, porém, será prever o comportamento do público diante dessas transformações. Novas regras de convívio serão estabelecidas, e, na prática, isso pode não ser economicamente viável. Mas a gente tem que reaquecer o mercado. Nossa solução temporária é movimentar as redes sociais com leitura semanal de textos. A ideia é se manter vivo ali, pois a gente não pode parar".

Amir Haddad, diretor

"Acho que as pessoas passarão a entender o significado profundo do teatro de rua e qual o sentido de se apropriar do espaço público, percebendo que, sem ele, os espaços privados não possuem sentido algum. Sinto que os espaços públicos serão mais usados após o fim do isolamento social, até que o público tenha coragem de entrar em lugares fechados. Assim, as pessoas entenderão que uma cidade é para quem vive nela, e não para quem vive dela".

André Junqueira, curador do Teatro Petra Gold

"Neste momento, as palavras principais são planejamento e calma, pois a reabertura das salas ainda é um futuro indefinido. Falar em volta ao normal é complicado, porque não sabemos como será a nova normalidade. Mas não sei se o teatro continua a ser teatro fora do teatro e dentro de uma tela...! Teatro é o que é porque é ao vivo, em contato com o outro. Talvez haja um surgimento de transmissões ao vivo de peças, mas sem substituir a apresentação física, da mesma forma que acontece com as transmissões de jogos de esporte. Acho que qualquer experiência é bem-vinda. Estamos descobrindo novas possibilidades".