Cultura
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Por Eduardo Graça — São Paulo

Se o espectador fechar os olhos por alguns dos 60 minutos de espetáculo, terá certeza de que “Virginia”, primeira peça escrita por Cláudia Abreu e inspirada na obra e vida de uma das maiores artistas do século XX, Virginia Woolf, trata de questões desgraçadamente cotidianas às mulheres sentadas nas poltronas ao lado. Misoginia, assédio moral, discriminação intelectual, violência psicológica, estupro e interferência masculina em decisões referentes à maternidade e ao prazer feminino fazem parte do inventário de vida feito pela escritora inglesa imediatamente antes de seu suicídio, tal qual imaginado pela atriz e agora dramaturga, após rigorosa pesquisa.

— Saí da peça pensando: será que Virginia Woolf estava tão à frente de seu tempo ou nós é que avançamos vagarosamente demais? — pergunta a universitária Bianca Carocieli, de 23 anos, na saída do Sesc 24 de Maio, em São Paulo.

Cláudia Abreu assina seu primeiro espetáculo, inspirado na obra e vida de uma das maiores artistas do século XX, Virginia Woolf — Foto: Maria Isabel Oliveira
Cláudia Abreu assina seu primeiro espetáculo, inspirado na obra e vida de uma das maiores artistas do século XX, Virginia Woolf — Foto: Maria Isabel Oliveira

O questionamento de Bianca tem razão de ser. No palco, os muitos personagens (entre eles a mãe Julia Stephen, o marido Leonard e a amante VitaSackville-West) que habitam mente, corpo e voz da atriz carioca de 51 anos oferecem retrato nada caricatural de Virginia Woolf e seu entorno.

Aos 59 anos, a escritora e editora escreveu um bilhete de despedida para o marido e a irmã, encheu de pedras os bolsos de seu casaco e se afogou no Rio Ouse, no interior da Inglaterra. Seu corpo foi encontrado por acaso, três semanas depois, por crianças.

Oitenta e um anos após sua morte, e com sua obra em domínio público no Brasil desde 2012, a ficcionista inovadora celebrada por, entre outros, “Mrs. Dalloway” e “Orlando: uma biografia” tem sido redescoberta pela faceta ensaística e memorialística, tão ou mais revolucionária, decididamente feminista. Revival que ganhou novo capítulo com o reencontro de Cláudia com a escritora. Aos 18 anos, a atriz encenou a celebrada adaptação de “Orlando” de Bia Lessa.

Quebrar barreiras

No Sesc 24 de Maio, um dos momentos mais citados pelo público de “Virginia” é o que trata da ainda jovem escritora decidida a conquistar o pai intelectual — e o passaporte de entrada para uma elite cultural segregadamente masculina — em seu métier: “Tudo o que queria era penetrar no seu mundo, fazer com que aquele homem, por vezes inatingível, olhasse para mim (...) Vou ler toda a biblioteca dele! (...) Essa será minha maior vingança!”.

— Ela tentava ultrapassar barreiras, como a impossibilidade de se comparar intelectualmente a seus pares, pois não podia ir à escola, como seus irmãos homens. Hoje, quantas mulheres não precisam ainda provar ter a mesma capacidade intelectual dos colegas de trabalho? Que estão à altura? Que nós estamos à altura de vocês?— diz Cláudia.

Ao fim do espetáculo da última quinta-feira, muitos pontuavam a urgência da peça. Mãe de Bianca, a pedagoga Fabiane, e sua amiga Cristiane Oliveira, publicitária, ambas de 45 anos, contam que a motivação inicial do trio era ver uma de suas atrizes favoritas de perto.

— Mas nos surpreendemos em cenas como as dos abusos, que nos remeteram a episódios públicos recentes gravíssimos. Mais atual, impossível — diz Cristiane.

Virginia Woolf os relatou em “Um esboço do passado”, que começou a escrever quatro meses antes do suicídio, publicado no Brasil pela primeira vez há dois anos com elogiada tradução de Ana Carolina Mesquita pela Nós, que esta semana lançou “Virginia (um inventário íntimo)”, a íntegra do texto original de Cláudia Abreu. A peça inclui o estupro da escritora por dois irmãos por parte de mãe, um deles 18 anos mais velho. Woolf jamais superou a dor e o trauma.

Cláudia Abreu: atriz assina o texto de seu primeiro monólogo — Foto: Divulgação / Clímax Conteúdo e Comunicação
Cláudia Abreu: atriz assina o texto de seu primeiro monólogo — Foto: Divulgação / Clímax Conteúdo e Comunicação

Editora da Nós, Simone Paulino conheceu Cláudia em um grupo de WhatsApp dedicado à literatura.

— Ela me perguntou se poderia ler a peça pra mim por videochamada, estava morando em Portugal. Além de minha paixão por Virginia, era fã da atriz que deu vida à Heloísa de “Anos rebeldes” e à Laura de “Celebridade”, é claro que disse sim, né? — conta a editora. — E foi extraordinário, o texto era maduro e surpreendente. Eu me comovi e me espantei com a coragem dela, de incorporar todos aqueles personagens em cena. Cláudia estuda literatura, se formou em filosofia, lê tudo de psicanálise, é uma mulher inteligentíssima que passa longe de qualquer esterótipo da celebridade superficial. Era inescapável publicar o livro.

As três últimas apresentações de “Virginia” na capital paulista, até o próximo domingo, estão esgotadas e com fila de espera. O monólogo segue para Belo Horizonte, nos dias 12 e 13 de agosto, e Santa Maria, Gramado e Porto Alegre (RS) em outubro, antes da temporada carioca, ainda sem data e local definidos.

Homenagem a Rubem Fonseca

A primeira dedicatória de “Virginia”, o livro, é a Rubem Fonseca, mestre do conto e do romance e sogro de Cláudia Abreu, que sempre disse a ela “que escrever faz bem, sobretudo a quem escreve”.

— Conversamos muito sobre esse meu desejo. Ele dizia “preciso achar meus livros da Virginia pra te dar”. É uma pena que Rubem não tenha lido o texto, que eu não tenha a opinião dele (o autor de “Feliz Ano Novo” morreu em 2020, aos 94 anos). Sinto imensamente. Mas ele está comigo, no palco inclusive. Se escrevo, também devo isso a ele — diz.

Na peça, Cláudia Abreu é dirigida por Amir Haddad — Foto: Divulgação / Clímax Conteúdo e Comunicação
Na peça, Cláudia Abreu é dirigida por Amir Haddad — Foto: Divulgação / Clímax Conteúdo e Comunicação

A atriz é casada com o cineasta José Henrique Fonseca, com quem tem quatro filhos. As duas mais velhas puderam ver a mulher-multidão de Cláudia. Maria, 21 anos, acompanhou o ensaio aberto de “Virginia” que a mãe fez para o grupo Tá na Rua, de Amir Haddad, diretor da peça, e para os atores da CAL e de graduação e pós, que Cláudia cursou, em Artes Cênicas da PUC (“Ela diz que gostou muito”). E Felipa, 15, viu um ensaio no sítio da família.

— Estava angustiada, tinha incluído mais vozes, e fiz pra ela e pro Zé na sala de casa. Felipa disse: “entendi tudo, mas como vai ser na hora de você trocar o personagem?”. Ainda não havia o desenho corporal (de Márcia Rubin). E sabe que, às vezes, estou no palco e vem um fluxo antigo? Por exemplo o avô, James, que vivia em outra versão. Falo comigo mesma: “não, Cláudia, James não!”.

Haddad e Cláudia trabalharam por zoom por dois anos no embrião da peça, desde 2019. Depois improvisaram na varanda da casa do diretor em Santa Teresa, no Rio. Foi quando a atriz decidiu que focaria no humano em Virginia e que a obra da escritora irromperia naturalmente no espetáculo.

Quando o diretor de 85 anos teve Covid, Malu Valle, colega da atriz em “Noite de reis”, de Amir, assumiu a codireção. E, atenta aos detalhes, às delicadezas do texto, ajudou Cláudia a “encontrar minha partitura cênica”.

— Sendo atriz, troca comigo sobre o abismo diário que é estar sozinha em cena — diz.

O reencontro de Cláudia com Virginia se deu nas aulas de literatura de Carmem Hanning. Ela queria escrever sobre o fluxo da consciência através do tempo e, por indicação da mestra, “leu tudo de Woolf”:

— Queria entender a técnica literária. Mas a peça veio da sensação de que Virginia me conhecia. Quem estava lendo quem ali, afinal?

Bons espetáculos emocionam a plateia. Mais raros são aqueles que desaguam para saguões, bares, lares. No Sesc, Cláudia assina livros e conversa com o público. As pessoas querem saber sua obra favorita da inglesa (“As ondas”), debater a mulher atual, as dores da criação e da existência, a ponte que ela estabelece na peça entre Viriginia e Ofélia, a personagem que enlouquece em um certo “Hamlet”. Muitos repetem a pergunta que remete à saúde mental de Virginia: “como não enlouquecer?”

— Como? Com tanta desigualdade, com tanta injustiça e agressividade. É de enlouquecer quem mais sofre e também quem tem alguma compaixão e consciência de que não está certo, de que não pode ser assim — diz a atriz.

Sua “Virginia” também desafia o público a repensar o que é, afinal, ser “normal”:

— Amo Bob Esponja, coisa de quem tem quatro filhos. Tem um episódio genial em que ele decide que quer ser normal e fica com uma “cara de pastel” o desenho todo. Ser normal é participar da boiada? Não arriscar, ser completamente previsível? Falar o que todos querem ouvir? Se sim, esse normal interessa? A quem? Aos fascistas?

Trecho de ‘Virginia (um inventário íntimo)’, de Cláudia Abreu

VIRGINIA: E a minha mãe, que na juventude teve tantas expectativas em relação à vida, que de tão bela chegou a posar para pintores pré-rafaelitas, faleceu de esgotamento aos 49 anos. Aquela mulher, o quanto ela poderia ter realizado com todo o seu entusiasmo, com a força de trabalho que tinha, ela podia ter feito tanto, tanto!

JULIA: É claro que eu tinha o orgulho de ter construído uma grande família. Mas não me realizei pessoalmente. Vocês podem dizer “Ah, você foi uma mulher típica de sua época”. E, é esse o ponto, as mulheres sempre foram menosprezadas, invisíveis.

VIRGINIA: “O anjo do lar”... Eu escrevi sobre isso. Na literatura, as mulheres tinham destaque, eram descritas como fortes. Nos gregos, em Shakespeare... Mas até pouco tempo, a vida cotidiana da mulher, a mulher comum, não tinha relevância nos livros, muito menos seus desejos, seus sonhos. Era como se isso não importasse. Já a figura do homem refletida no espelho tinha o dobro de seu tamanho natural. E era assim que queriam ser vistos pelas mulheres. A vida não fez jus ao potencial e à grandeza da minha mãe. O que eu sou eu devo a ela. Ela se realizou, sim, através de mim. Porque ela é a minha inspiração, sempre esteve aqui comigo, mesmo que nem sempre de maneira tranquila para mim. Escrever me libertou da dor da ausência dela, da sua voz que ecoava em mim todos os dias desde a sua morte. Só assim consegui expurgar grande parte das minhas vivências em família. Eu nunca pude frequentar a escola. As mulheres não tinham esse direito. Aliás, em muitos lugares, elas não têm esse direito até hoje (...)

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