Cultura
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Por Alex Marshall, The New York Times — Sturry, Inglaterra

Desde a primeira vez que foi entrevistado, por ocasião do lançamento de seu livro de estreia, publicado em 1988, o escritor Abdulrazak Gurnah enfrenta tentativas de categorização dele mesmo e de sua obra: será que se vê como escritor africano? Ou britânico? Em nome de que grupo ele fala: esse ou aquele?

Mesmo depois que ganhou o Nobel de Literatura no ano passado – prêmio concedido a apenas quatro outros escritores africanos antes dele, incluindo Wole Soyinka e Naguib Mahfouz –, perguntaram-lhe em uma coletiva de imprensa a respeito da "controvérsia sobre sua identidade". As pessoas estavam aparentemente confusas sobre como o definir. "Que controvérsia? Sei quem sou!", ele contou ter respondido.

Gurnah, de 73 anos, mudou-se de Zanzibar, onde nasceu, para a Inglaterra em 1968. Durante as décadas que se seguiram, aprimorou seu ofício e acabou obtendo reconhecimento silencioso como romancista. Seus livros frequentemente apresentavam a era colonial da África Oriental e suas consequências, a experiência dos imigrantes no Reino Unido, ou ambos – e, como resultado, ele às vezes precisou ir contra a ideia de que falava por alguém além de si mesmo:

— Resisto à ideia de que um escritor representa alguma coisa. Eu me represento. Eu me represento no que penso e no que sou, no que me preocupa, no que quero escrever. Falo como uma voz entre muitos, e, se você ouvir um eco em sua experiência, ótimo. Mesmo a escrita pós-colonial como a minha, que trata do processo de colonização e suas consequências, tem a ver com a experiência, não com um local — diz Gurnah.

Para fãs de Gurnah, a humanidade em sua obra é um de seus pontos mais fortes. — Foto: The New York Times
Para fãs de Gurnah, a humanidade em sua obra é um de seus pontos mais fortes. — Foto: The New York Times

Leitores do mundo inteiro encontraram de fato, independentemente de sua formação, uma profunda ligação com sua escrita. Gurnah foi premiado com o Nobel pelo trabalho de sua vida: seus dez romances incluem "By the Sea", sobre um velho requerente de asilo que tenta construir uma vida na costa sul da Grã-Bretanha, e "Paradise", que foi selecionado para o Booker Prize em 1994.

Desde que o Nobel foi anunciado em outubro passado, seus livros, muitos dos quais estavam fora de circulação nos Estados Unidos naquela altura, foram relançados. Foram traduzidos para 38 idiomas, incluindo a primeira tradução de seu trabalho para o suaíli, a principal língua de sua terra natal.

Em uma manhã recente, na sala de estar de sua casa na sonolenta cidade de Sturry, no sudeste da Inglaterra, decorada com papel de parede estampado e pinturas de amigos, ele disse que aguardava o lançamento de seus romances em estoniano, polonês e tcheco. Também esperava mais atenção nos Estados Unidos, onde "Sobrevidas", que aborda três pessoas que tentam sobreviver enquanto a Alemanha e o Reino Unido lutam pela África Oriental, foi lançado pela Riverhead Books. (Saiu no Reino Unido pela Bloomsbury, em 2020.)

Alexandra Pringle, editora britânica de longa data de Gurnah, afirmou que o livro mostrou sua capacidade de narrar "grandes eventos históricos por intermédio de vidas pequenas" com uma prosa sutil, que é "a mais difícil de alcançar", acrescentando que muitos leitores estereotipam os autores africanos, esperando que eles sejam exuberantes em sua escrita: "Isso não é Abdulrazak."

Amigos e admiradores concordaram com essa avaliação. A escritora Maaza Mengiste o encontrou para almoçar depois que ele ganhou o Nobel e comentou que ele era "gracioso e gentil como dá para imaginar pelos seus livros", mas também muito engraçado: ele contou a ela que, quando deu a notícia do prêmio aos netos, eles disseram só um "o.k., vovô", sem entender o significado.

Gurnah cresceu em Zanzibar, que era um protetorado britânico e um sultanato. Seu pai vendia peixes pescados no Oceano Índico, e grande parte do início de sua vida se concentrou na costa perto de casa. Em "Map Reading", pequena coleção de ensaios de Gurnah que será lançada em 24 de novembro pela Bloomsbury, ele descreve como, quase todo mês de novembro, inúmeros dhows ancoravam no porto, de modo que era possível ver os marinheiros andando de um para outro, cheios de mercadorias, como se estivessem em terra.

Sua infância foi sacudida pela primeira vez em 1964, quando rebeldes derrubaram o governo majoritariamente árabe de Zanzibar. Gurnah passava as férias com a família em Dar es Salaam, a maior cidade da Tanzânia, no dia da revolução, mas assistiu à "visão lamentável" do sultão em fuga de Zanzibar e ex-autoridades britânicas que chegavam ao porto. Quando voltou para Zanzibar, a família passou por "casas queimadas, buracos de bala nas paredes", e percebeu que algo terrível havia acontecido. Gurnah contou não ter presenciado nenhuma violência, "mas não era preciso testemunhá-la; você ouvia falar nela o tempo todo".

O novo governo fechou as escolas, depois as reabriu, exigindo que recém-formados se tornassem professores, em grande parte nas áreas rurais, contou Gurnah. Sentindo que tinham pouco futuro, ele e seu irmão partiram para a Inglaterra, onde um primo estudava. Tinham apenas 400 libras britânicas para sobreviver.

Depois que terminou o equivalente ao ensino médio na Inglaterra, Gurnah trabalhou como faxineiro hospitalar durante três anos para sobreviver antes de frequentar a universidade. E acabou começando a escrever – primeiro, contos sobre o lar; muito mais tarde, romances completos. Em sua palestra no Nobel, declarou que o impulso veio "da minha saudade de casa e em meio à angústia da vida como estrangeiro. Havia alguma coisa que eu precisava dizer".

A escrita primeiro refletiu o que havia acontecido em Zanzibar, acrescentou, mas rapidamente cresceu e incluiu as questões do colonialismo e de seu legado, bem como seu tratamento na Inglaterra. "Ia aumentando o desejo de escrever como um contraponto aos resumos feitos por pessoas que nos desprezavam e nos menosprezavam", observou Gurnah em seu discurso no Nobel, embora tenha acrescentado que nunca quis polemizar, mas apenas escrever livros cheios da capacidade de nutrir ternura pela humanidade em meio à crueldade, e também bondade, mesmo que proveniente de origens inesperadas.

Segundo os fãs de Gurnah, a humanidade em sua obra é um de seus pontos mais fortes. Mengiste comentou que seus romances mostram que "é possível que as pessoas existam dentro de catástrofes ou sistemas políticos devastadores e ainda mantenham sua humanidade, ainda se apaixonem, ainda constituam uma família. É uma declaração sutilmente política".

Seu trabalho mais aclamado reflete essa abordagem. "Paradise" foi concebido depois que Gurnah foi autorizado a retornar a Zanzibar pela primeira vez, em 1984. Um dia, estava à janela vendo seu pai caminhar até uma mesquita e percebeu que o mais velho Gurnah era apenas uma criança quando os britânicos estabeleceram um protetorado em Zanzibar. Gurnah disse que se perguntou "como isso teria sido para o garoto, o início do reconhecimento de que estranhos ocuparam sua vida". O romance que escreveu é tanto sobre o amadurecimento de um menino e sobre crianças que são usadas como garantia para dívidas quanto sobre o colonialismo.

"Sobrevidas", romance igualmente histórico, começou como uma tentativa de escrever sobre a guerra entre britânicos e alemães na África Oriental, que já havia sido retratada em romances "como um piquenique", de acordo com Gurnah, embora centenas de milhares de civis tenham morrido de fome e de doenças relacionadas à guerra. Um de seus personagens centrais, Hamza, inscreve-se para se juntar ao exército alemão e não pode voltar atrás, embora perceba rapidamente seu erro. Quando consegue sair, torna-se um estranho em sua cidade natal, mas reconstrói a vida e se envolve em um romance.

Ganhar o Nobel, e a nova fama que veio com ele, exigiu alguns ajustes: não tem tido tempo de escrever. Sua agenda está repleta de entrevistas e viagens ocasionais ao exterior, incluindo um retorno a Zanzibar, onde foi tratado como herói pela primeira vez, apesar de poucos de seus livros estarem disponíveis lá.

Denise deCaires Narai, esposa de Gurnah, contou que ele é uma pessoa naturalmente quieta e atenciosa, e que está se esforçando para corresponder às exigências do Nobel, acrescentando que houve pedidos para que representasse lugares e grupos – a África, Zanzibar, o Islã –, mas que ele não quer "ceder ao que as pessoas acreditam que alguém como ele deve dizer ou ser".

Mas, em casa, com música clássica tocando suavemente ao fundo, Gurnah insinuou que tinha uma estratégia de enfrentamento. Em determinada altura, falou em entrevistadores que tentam fazê-lo discutir temas polêmicos: "Há certa pressão para responder a eles. Mas você pensa um pouco e encontra uma maneira de escapar."

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