Cultura
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Por Emiliano Urbim — Rio de Janeiro e São Paulo

A primeira carta da História do Brasil foi, inevitavelmente, para o exterior. Em 1500, no litoral da futura Bahia, Pero Vaz de Caminha escreveu a Dom Manuel I sobre a terra onde “em se plantando, tudo dá!”. Deu no que deu. Neste 7 de Setembro, O GLOBO convidou quatro autores lusófonos a inverter a correspondência e enviar cartas ao país que celebra hoje 200 anos de Independência — carinhosamente chamado de “você”.

A portuguesa Yara Monteiro recorda uma viagem à Amazônia e provoca: “Vai uma nova Independência?” O moçambicano Mia Couto revive a alegria de descobrir “um irmão chamado Brasil”, “um lugar que me abraçava com meus próprios braços”. O angolano José Eduardo Agualusa, colunista do Segundo Caderno, fala da primeira visita: “Não houve estranhamento. Para mim foi um reencontro.” E Luís Cardoso ressalta as semelhanças entre o nosso país e o seu Timor.

Em comum entre todos, a constatação de que uma terra com aparência tão paradisíaca esconde, desde Pero Vaz, muitos problemas. Também é unânime o desejo (ou a certeza) de que o Brasil pode (e vai) melhorar. Sem que leve outros 200 anos para isso...

Yara Monteiro, Portugal

Proa de barco em viagem pelo Acre em 2016 — Foto: Yara Monteiro
Proa de barco em viagem pelo Acre em 2016 — Foto: Yara Monteiro

Quando me perguntam onde vivi, brinco respondendo não ter vivido em você, no Brasil, mas sim na Barra da Tijuca. Minhas palavras exprimem meu sentimento por você: sua ancestralidade não é o estilo de vida americano importado. Lhe digo mais: o centro urbano é uma superficial ideia de quem você é.

Muitas vezes me perguntam também onde nasci.

“Meu último nascimento foi no Brasil. Antes disso em Portugal e primeiro em Angola.” Respondo certa em deixar quem me escuta num emaranhado de geografias.

No início do ano de 2016, embarquei numa viagem ao Acre e com destino à Floresta Amazônica. Sonho de infância, desejo em conhecer uma de suas “casas” originárias.

Havia preparado minha mochila com extrema diligência, mas total ineficácia. Nada me poderia ter habilitado para a vida na floresta, simplesmente por ausência de ponto de comparação. Sou bicho urbano.

Dessa viagem, uma das experiências mais marcantes foi o percurso na embarcação metálica —voadeira — pelo Rio Gregório.

O momento era de contemplação e introspeção. Os sons vindos da natureza cerrada e quase intocada nas margens eram avassaladores, ressoando em meu peito e sobrepondo-se ao ruído do motor. A mata soltava suas gargalhadas e cantos. Em vários momentos, fechei meus olhos, sentindo candura, respeito e comoção. Noutros, eles percorreram céu aberto, caudal do rio, margens verdes e cerradas.

Por várias vezes, dei comigo pensando no Deus de Einstein e Espinosa: Deus e natureza serem a mesma coisa. A Amazônia e você serem a mesma coisa. Logo a desenfreada desflorestação, uma violência autoinfligida, autodestruição. Sintoma de baixa autoestima? Falta de amor-próprio? Quem ama cuida, quem ama planta.

Talvez, você precise de um regresso à casa, da dulcíssima fermentação da terra, da sombra verde, do sinal das águas, da trilha percorrida em quatro luas, da purga vinda da força da natureza. É muito provável ser a purga o que lhe falte, um livramento dos resquícios coloniais, genocidas, escravocratas, para que você regresse à origem soberana onde mora a memória para seu amanhã.

Brasil, vai uma nova Independência?

Mia Couto, Moçambique

Nélida Pinõn, Mia Couto e Patrícia Couto em 1998, na posse de Nélida como presidente da ABL — Foto: Arquivo pessoal/Mia Couto
Nélida Pinõn, Mia Couto e Patrícia Couto em 1998, na posse de Nélida como presidente da ABL — Foto: Arquivo pessoal/Mia Couto

Aconteceu-me a mim o oposto do que sucedeu com Pedro Álvares Cabral: encontrei você, Brasil, pensando que era a minha própria terra. Não tive nem barco, nem mar. Quem viajou foram vozes brasileiras que entraram na minha casa como se não houvesse porta. Essas vozes falavam de uma nação distante que guardava África nas suas raízes e misturava África nas suas sementes.

Na minha varanda, desembarcou o mar de Dorival Caymmi, desembarcaram os versos de João Cabral, de Bandeira, desembarcou a prosa de Drummond, Amado, Machado, Rosa e Graciliano. Havia um idioma que era o de Moçambique, mas que já era um outro. E havia um lugar que me abraçava com os meus próprios braços. Esse parentesco era motivo de orgulho dos moçambicanos que, enchendo o peito, avisavam o mundo: olha que temos um irmão que se chama Brasil!

Em 1975, já Moçambique livre e independente, chegaram dezenas de brasileiros que fugiam do regime militar que se tinha instalado à força em Brasília. Esse país que eu idealizara como um lugar de afeto e harmonia era, desde 1964, governado pelo ódio, pelo medo e pela violência. Os brasileiros que buscavam refúgio político em Moçambique eram pessoas tão generosas, solidárias e afáveis e era difícil aceitar que a maior parte deles tivessem sido perseguidos, presos e torturados.

Finalmente, em 1987, viajei para o Brasil, dois anos depois da democracia ter sido reinstalada. Foi como encontrar finalmente um pretendente com quem, durante anos, namorou por carta. Neste caso, não houve desilusão. Pelo contrário, a paixão pela gente e pela terra brasileira não me deixou ver a ruga e a mácula. Encontrei um Brasil que eu tinha romantizado.

Sob essa capa de doçura e afabilidade havia uma outra dimensão de violência que era filha e neta da brutalidade colonial. Eu tinha visitado você, Brasil, como aqueles sujeitos que clamam serem cegos para raças e, desse modo, não são capazes de ver o racismo.

Essa cegueira seletiva fez com que, décadas depois, me surpreendesse o fato de os brasileiros terem elegido para presidente um homem que declara sentir saudades da ditadura e que celebra como referência moral um torturador no regime militar. Um presidente que substitui o diálogo pela ameaça das armas e que manifesta a maior indiferença perante a morte e o sofrimento dos seus compatriotas. Houve, admito, um Brasil que foi mais sonho do que realidade. Mas este você de hoje é um pesadelo bem real.

O meu maior desejo é que os brasileiros superem de vez e para sempre esta sua passagem pelo inferno. O Brasil que ganhou o respeito do mundo não pode ser representado senão por alguém que celebra a vida e que defende o tesouro maior da nação brasileira: a infinita diversidade do seu passado e pluralidade do seu futuro.

Não é apenas um desejo pessoal. É uma certeza: você vai-se levantar, vai sacudir a poeira e vai dar a volta por cima.

José Eduardo Agualusa, Angola

O escritor angolano José Eduardo Agualusa no Arco do Teles, centro do Rio, em 2006 — Foto: Mônica Imbuzeiro
O escritor angolano José Eduardo Agualusa no Arco do Teles, centro do Rio, em 2006 — Foto: Mônica Imbuzeiro

Brasil, você entrou na minha vida quando eu era criança, através dos meus tios cariocas, irmãos do meu pai, sempre que eles visitavam Angola. Mais tarde, passou a fazer-se presente através da música popular, da literatura e do teatro. A primeira vez que o visitei — Rio de Janeiro e Salvador —, não senti que estivesse em território estrangeiro. Não houve estranhamento. Para mim foi um reencontro.

Cresci e fui moldado no contato com a cultura brasileira. Não seria a mesma pessoa se não tivesse crescido escutando Bethânia, Gal, Caetano, Gil, Chico Buarque, Paulinho da Viola e tantos outros. Ao ler Jorge Amado, a partir dos meus 12 anos, reconheci a matriz de um universo africano no qual eu estava imerso. Reconheci-me africano, e, ao mesmo tempo, parte de um universo muito maior — o da diáspora africana e crioula.

Levei algum tempo (talvez demasiado tempo) a descobrir que você não era apenas aquele mundo generoso, incrivelmente criativo, iluminado e acolhedor das canções do Gil e do Paulinho da Viola; dos terreiros de candomblé; das rodas de capoeira ou das escolas de samba.

Quando o outro Brasil — o da intolerância religiosa, do racismo, da burguesia arrogante, rústica e disneylandizada — me alcançou, eu já estava irremediavelmente apaixonado por você. E. apesar de tudo, tantos anos depois, a paixão permanece.

Luís Cardoso, Timor Leste

Luís Cardoso na Bienal do Livro de São Paulo, em 2022 — Foto: Divulgação
Luís Cardoso na Bienal do Livro de São Paulo, em 2022 — Foto: Divulgação

O que une Timor a você, Brasil?

Partilhamos a cultura, a língua, a religião da pátria lusitana e, conjuntamente com as culturas, línguas e religiões autóctones, formamos identidades próprias que nos enchem de orgulho.

Você afirma-se no mundo pela imensidão do seu território, pela grandeza dos seus povos, pela sua extraordinária cultura e pelos seus valiosos recursos naturais, com destaque para a Amazônia, o grande pulmão da Terra. Passou por vários momentos difíceis ao longo da sua História, mas soube sempre encontrar uma porta de saída, como aconteceu com a feroz ditadura militar. Muitos homens e mulheres sacrificaram as suas vidas pela democracia.

Timor Leste também passou por momentos difíceis, com várias guerras e invasões, tendo a última, a ocupação indonésia, provocado a morte a mais de 200 mil pessoas e a destruição da maioria da infraestrutura do país. Mas erguemo-nos das cinzas e hoje somos um país independente.

Em face dos enormes sacrifícios por que passaram os povos dos nossos países, esperava-se que todos pudéssemos viver com dignidade, em paz e democracia, e com melhores condições de vida. Ambos os países são detentores de enormes recursos naturais pelo que não encontro razão alguma para justificar a extrema pobreza em que vive uma grande parte de brasileiros e de timorenses.

Temos em relação ao Brasil a atenuante de o estado timorense ter apenas 20 anos. Mas, se o rumo não for alterado, daqui a 200 anos pouca coisa se poderá colher daquilo que (não) vamos plantando agora. Rapinam-se recursos que a todos pertencem em negócios que a poucos beneficiam. Restam-nos as abóboras. Abóboras que não enchem a barriga e a conta bancária dos políticos, mas vão matando a fome da população cada vez mais empobrecida.

No ano em que você celebra os 200 anos da sua Independência, ainda persistem problemas como o racismo, a pobreza, a usurpação da riqueza e do modo de vida dos povos indígenas, a devastação da Amazônia, a violência policial e dos grupos marginais e, como disse um amigo meu, o excesso dos pregadores de Deus que a uns mata e a outros esfola.

Tive a honra e o privilégio de estar presente na 34ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo. Fiquei emocionado por ver tanta juventude brasileira em volta dos livros, editores e autores. A cultura, a par da educação, é sem dúvida um dos melhores recursos de afirmação de identidades coletivas, um veículo de transformação social e política e uma forma de realizar a felicidade. Outra é a democracia que nos permite fazer escolhas.

Escolhamos quem nos possa providenciar esperança num futuro mais justo e equitativo e celebremos então os 20 anos da Independência de Timor Leste e os 200 anos de sua Independência, República Federativa do Brasil.

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