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Por Bolívar Torres


Franz Kafka — Foto: Arte O GLOBO/Gustavo Amaral
Franz Kafka — Foto: Arte O GLOBO/Gustavo Amaral

No TikTok, a rede social preferida dos mais jovens, Franz Kafka (1883-1924) é o que os usuários chamam de trend, uma tendência. A hashtag com seu sobrenome tem 40 milhões de visualizações — um número considerável. Basta colocá-la na área de busca para que apareçam depoimentos pessoais ou montagens fofas e divertidas dos leitores que acabam de descobrir o criador de “A metamorfose”.

A perenidade de sua obra aparece no vídeo de um usuário que não entende por que o autor “deprime” tanto quem é fascinado por ele, ou num relato da leitura de “Carta ao pai”, a clássica missiva escrita por Kafka para o patriarca da família (e nunca entregue a ele). Exibindo a sua identificação com o texto, que se tornou símbolo das difíceis relações entre pais e filhos, a tiktoker usou a apropriada hashtag #daddyissues, expressão popular para designar quem tem problemas com o pai. E há também um post que mistura imagens de Kafka ao som da banda Abba e lança uma indagação: “Por que você continua obcecado por um autor morto há cem anos?”

O recente lançamento brasileiro de “Kafka: os anos decisivos” (Todavia), do alemão Reiner Stach, traz algumas respostas a esta pergunta. Trata-se de uma das mais completas biografias do escritor já publicadas. Como aconteceu lá fora, o lançamento da obra começa pelo meio, ou seja, o segundo dos três volumes, abrangendo o período de Kafka que vai dos seus 27 aos 32 anos (1910 a 1915). São os anos que mais pesaram na construção da sua persona e de sua obra, quando escreveu textos seminais como “A metamorfose” e “O veredicto”.

— Há questões na obra de Kafka que são absolutamente modernas — diz o biógrafo, que aos 71 anos está duas gerações mais perto de Kafka do que os leitores mais jovens. — Como, por exemplo, a pergunta: devo me adequar aos valores geralmente aceitos na sociedade ou devo seguir meus talentos e interesses? Este é um problema que cada geração deve resolver por si mesma.

Kafka, o primeiro millennial?

A trajetória de Kafka é a de um homem em constante luta por si mesmo. O que, na era das identidades fragmentadas das redes sociais e das “lições” dos coaches e influenciadores digitais, não poderia ser mais pertinente.

— Eu poderia imaginar que um jovem leitor que estuda Kafka intensamente não mais se contentará em criar uma identidade para si mesmo por meio de um “perfil” público — diz Stach. — Ele compreenderá que o problema da própria identidade não pode ser resolvido por meios tão primitivos. E certamente não com o conselho de “influencers”.

O Kafka que aparece na nova biografia compartilha muitas angústias e dificuldades com muitos millennials e zennials de hoje. Com dificuldade de se encaixar em uma sociedade opressora, sentia que o seu trabalho burocrático numa seguradora tolhia seus impulsos criativos.

O peso do patriarcado, que ele via se espalhar por todas as esferas da vida pública, já começava em casa. Morando com os pais, sempre exposto aos barulhos domésticos, um sensível Kafka sofria com a poluição sonora. A pressão do pai para que se endireitasse fez com que ele assumisse com o cunhado um negócio com amianto. Mas mostrou desinteresse total pelo empreendimento.

O escritor e tradutor Marcelo Backes, que verteu para o português os contos da coletânea “Blumfeld, um solteirão de mais idade e outras histórias”, conta que percebe a identificação dos alunos mais jovens quando fala sobre Kafka em seus cursos. O início do conto "Blumfeld", aliás, não poderia traduzir melhor os desencantos contemporâneos: “Estou parado na plataforma do bonde e completamente inseguro no que diz respeito à minha posição neste mundo, nesta cidade, em minha família”, escreve o autor tcheco.

— Kafka é atual porque sabia identificar núcleos de opressão, dos mais estreitos aos mais amplos — diz Backes. — Ele fala sobre esse sentimento de estar em um meio inóspito, no qual não há um mínimo de relação que permita um acordo razoável para que você se sinta bem. É onde você nunca encontra o seu lugar. Nesse mundo institucionalizado pelo trabalho e pelo patriarcado, é impossível as novas gerações não se sentirem representadas por esse mal-estar.

Tuítes certeiros

Ano passado, a Todavia lançou uma edição dos “Diários” (1909-1923) de Kafka, uma das bases da biografia de Stach. Tem de tudo: rascunhos de narrativas, registros impressionistas e lamentos de um jovem frustrado que poderiam muito bem ser posts em uma rede social. Como na entrada do dia 20 de outubro de 1913, onde ele escreve simplesmente: "A tristeza inimaginável pela manhã". No Twitter, aliás, o perfil @Franz_K_ Diaries publica trechos como se fossem tuítes.

A capa da edição é da autoria do cartunista americano Tom Gauld, que coloca o leitor no ponto de vista de um stalker de Kafka, que o vigiaria pela janela escrevendo em sua escrivaninha. O desenho imagina a ansiedade que qualquer um sentiria ao ter seu diário sendo lido por estranhos —ou “por algum algoritmo contemporâneo”, como nota Gauld.

O escritor tcheco é um personagem recorrente do cartunista americano. Em seu livro “Baking with Kafka” (“Assando com Kafka”), ele mostra o autor de “O processo” refletindo sobre a existência enquanto ensina aos leitores sua receita de bolinho de chuva. Uma paródia dos influencers de desenvolvimento pessoal?

— Kafka é um bom personagem para usar nas minhas tirinhas porque, mesmo para alguém que nunca leu seus livros, existe uma ideia muito clara de como uma história de Kafka se parece — diz Gauld. — É útil para mim porque posso brincar com a expectativa do público, como o caso em que o transformo em um absurdo cozinheiro youtuber. Se ele vivesse hoje, eu o imaginaria escrevendo uma comédia sombria sobre os poderes da tecnologia ou uma parábola sobre a crise climática.

Cinco curiosidades de 'Kafka: Os anos decisivos'

Hábitos alimentares: Kafka era adepto do “fletcherismo”, a técnica de mastigar muito cada pedaço de alimento. Mostrando o descontentamento com os hábitos do filho à mesa, seu pai cobria o rosto com um jornal. O patriarca também desdenhava de seu vegetarianismo. Suas refeições, porém, não eram nada frugais. Servia-se de iogurtes, tâmaras, figos, nozes, castanhas e pão integral, entre outros alimentos.

Saradão: No imaginário social, Kafka é visto como frágil fisicamente. Mas ele gostava de esportes como natação e remo. E foi por anos um fiel seguidor do sistema J.P. Müller, guru fitness dinamarquês e espécie de precursor dos personal trainers. A rotina incluía exercícios de 15 minutos, que Kafka praticava nu. Muita gente segue o sistema até hoje.

Constrangimento com editor: Levado pelo amigo Max Brod para conhecer Kurt Wolff, um dos principais editores de língua alemã da época, Kafka quase não falou. Incapaz de “vender” a sua obra, deixou a tarefa para o desinibido Brod. Ao final do encontro, Kafka ainda causou perplexidade. Despediu-se com uma frase que um editor nunca esperaria de seu possível autor: “Sempre lhe serei mais grato pela devolução de meu manuscrito do que por sua publicação.”

Rei do amianto: Uma das funções de Kafka na seguradora em que trabalhava era convencer patrões a implementar métodos de segurança que protegeriam seus funcionários. E era muito bom nisso. Porém, quando abriu com seu cunhado uma empresa de amianto, ele nunca se preocupou com a saúde de seus funcionários, que respiravam a fibra tóxica diariamente sem máscaras. Na época, os males do amianto ainda não eram conhecidos.

Bilhetes ousados: Kafka gostava de surpreender seu chefe. Certo dia, faltou ao trabalho e enviou a ele um bilhete para justificar a ausência. “Ao pretender me levantar da cama hoje, simplesmente desmoronei. A razão para tanto é simples: estou trabalhando demais. Não no escritório, mas em outras ocupações (...). Só que, justamente para mim, esta é uma vida dupla terrível.” E admite que, após retornar para o trabalho, seu chefe iria querer vê-lo “longe do departamento”. Mas era uma ousadia consciente: Kafka e seu chefe eram amigos, e ele sabia que não seria demitido.

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