Cultura
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Por Maria Fortuna — Rio de Janeiro

Humberto Carrão perdeu um irmão aos 9 anos. Vitor sofreu um atropelamento fatal. Ele tinha 30 anos, dormia no quarto ao lado e era o grande parceiro de videogame do ator, filho temporão de um casal de bancários, pais de outros seis rebentos de casamentos anteriores. Logo depois, veio a morte da avó. Em seguida, a de um tio. Apesar de guardar a lembrança de uma infância feliz, Carrão foi profundamente marcado por essas perdas.

Talvez esteja aí a explicação para a importância que o artista de 31 anos dá à memória. "Futuro é pra quem lembrar", a famosa frase do samba "Cabô, meu pai", de Aldir Blanc, Luiz Carlos Da Vila e Moacyr Luz, foi citada por ele três vezes durante esta entrevista, realizada em um restaurante japonês na Zona Sul carioca e regada a missoshiro e chá de gengibre com limão.

O fato de a maioria dos amigos terem o dobro de sua idade também ajuda a entender mais sobre a personalidade desse filho de Oxalá e Omolu, dois orixás anciãos nas religiões de matriz africana. Carrão, que iniciou a carreira ainda criança e cresceu contracenando com atores experientes, é definido por muitos como um "jovem velho".

— Humberto é aquele menino novo que você esquece completamente a idade quando o vê num bar trocando ideia com (jornalista e político) Cid Benjamin — resume Wagner Moura, que o conheceu em manifestações políticas e depois o dirigiu em "Marighella".

A máxima de Aldir parece servir de norte também para as escolhas profissionais do ator que, nos últimos anos, tem se envolvido em projetos carregados de história. Além de "Marighella", sobre o líder revolucionário que articula frente de resistência contra o regime militar, vale lembrar a trajetória de "Aquarius", que aborda especulação imobiliária, e cujo elenco levantou cartazes em Cannes denunciando o impeachment de Dilma Rousseff como um golpe.

O mais recente deles, no entanto, é "Rota 66 — A polícia que mata", disponível no Globoplay. Inspirada no livro homônimo de Caco Barcellos, a série de Maria Camargo e Teodoro Poppovic remonta a investigação feita pelo jornalista, vivido por Carrão, acerca das ações violentas do grupo de elite da polícia paulistana entre 1970 e 1972.

Criada originalmente para combater a oposição no período da ditadura, a Rota foi acusada de seguir matando a população preta e pobre do país. É uma realidade de violência policial que pouco mudou de lá para cá, mas Carrão destaca a importância da série para fazer pensar e não seguir repetindo erros.

— Sou um artista que acha que livros, filmes e reportagens podem mudar o mundo. A série é um esforço de lembrar nosso passado para poder ter um futuro melhor. Uma forma de refletirmos sobre como nossa história está ligada à violência. Os saudosistas da ditadura estão aí. Enquanto nossos vizinhos da América do Sul transformaram lugares de tortura em centros de pensamento, a gente continua tendo museus da polícia civil — critica ele, que também está no ar como Rafael na novela "Todas as flores", do Globoplay.

Para Carrão, "Rota 66", que tem direção artística de Philippe Barcinski, é ainda uma homenagem ao tipo de jornalismo feito por Barcellos.

— Caco acompanha as histórias, volta a elas. E a série faz isso também, não encerra os casos. É dura, tensa, mas é sobre quem fica. Pessoas que perderam parentes mortos pela polícia e lutam pela memória e pelos direitos deles — destaca. — O livro do Caco tem uma estratégia sagaz que a série repete. Começa com um caso que foi exceção e gerou comoção, a história de meninos ricos de São Paulo, para depois dizer: "Isso te chocou? Então, deixa eu te mostrar que acontece sistematicamente com gente pobre e preta". Caco levantou 4200 casos!

No livro, Barcellos não é um personagem em foco. Aparece e fala pouco. Algo que, para um ator, poderia ser um problema ("a gente gosta de falar em cena, é aquela história de 'quantas falas eu tenho?'", diverte-se Carrão). Só que não. O jornalista também pensa bastante e era preciso conseguir transmitir ao espectador o que se passava por sua cabeça enquanto montava o quebra-cabeça das investigações.

Daí surgiu o desafio: entender como reproduzir essas expressões e sensações. O jeito foi Carrão colar em Barcellos durante dois dias, no Complexo do Salgueiro, onde o repórter fazia uma matéria sobre os dez anos da morte da juíza Patrícia Acioli. Ampliar notas da vida pessoal — como a empatia diante dos problemas de desconhecidos ao mesmo tempo em que esquecia o próprio filho — ajudou a ir desenhando a falha trágica do personagem.

— Há nele uma falta de traquejo social e a dificuldade com quem está perto, com as responsabilidades das coisas práticas do dia a dia. Tem introspeção, timidez, mas também uma inquietude enorme, portanto, há um corpo atento. Depois, ele vai se tornando outro Caco, ganhando habilidade e elegância. O Caco que conheci já tinha 40 anos de TV GLOBO. Mas de tudo isso, o principal era a escuta, a forma de ele viver e fazer jornalismo. Para o Caco, a vida, a história do outro importa — observa o ator, revelando que Barcellos deu alguns toques sobre o roteiro. — No primeiro tratamento, o personagem falava muito, até que o Caco disse: "Eu não divido tanto assim o que apuro e investigo".

Interesse pela História

Jogar luz sobre o passado é o que Carrão também fez nos dois curtas que dirigiu. "À festa, à guerra" gira em torno de um prefeito que encomenda um samba para que a população esqueça a crise. A escola de samba propõe, então, um enredo que passa pela revisão da história daquela cidade sob a perspectiva do povo Tamoio, que vivia ali antes.

"Não gastei R$ 4 milhões para atrair os olhos das pessoas para o passado da minha cidade", rebate o prefeito diante da proposta, "não existe mais índios na minha cidade... é pra frente que se olha". O carnaval potencializa a discussão sobre os problemas e acaba acirrando a revolta. O filme abre com imagens reais da greve dos garis no Rio no carnaval de 2014.

Já "Regeneração" cruza a reforma do prefeito Pereira Passos (1836-1913) com as obras das Olimpíadas e da Copa do Mundo para falar sobre como o Rio sempre esteve mais voltado para o olhar externo do que para quem vive aqui. A narrativa é conduzida por uma guia turística que, ao contar a história da cidade para duas visitantes, exalta estátuas de colonizadores e ignora marcos seminais como o Cais do Valongo.

Formado em cinema com um TCC sobre a relação da Tropicália com Glauber Rocha, Carrão finaliza agora outros dois roteiros em parceria com a escritora Ana Maria Gonçalves, autora do livro "Um defeito de cor". Um é sobre jornalismo; o outro, sobre vítimas da ditadura que recebem indenização do governo e não sabem o que fazer com o dinheiro.

Caricatura da boemia

Conhecido por suas posições políticas à esquerda — estava no comício do ex-presidente Lula na Portela, no mês passado, milita na ruas e nas redes —, Carrão escolhe falar de temas que lhe movem como cidadão. E eles estão conectados à relação do ator com a cidade.

Uma relação que brotou do interesse pela História do Rio e seguiu pavimentada por sua paixão pelo samba. Foi se embrenhando atrás de rodas raiz e blocos de carnaval que o carioca, flamenguista e mangueirense, construiu intimidade com o lugar em que nasceu.

— O samba ensina não só sobre a cidade e a celebração, mas a reverenciar quem veio antes. É comum acabarem de cantar uma música e alguém perguntar: "De quem é essa?" Tem sempre uma pessoa que sabe o nome de todos os compositores — afirma Carrão, que toca repique de mão, tantã, formou sua própria roda com amigos e adora as composições de Wilson Moreira, Nelson Cavaquinho, Cartola e Nei Lopes.

Por causa da onipresença em eventos do gênero, há quem o tenha carimbado de "figurinha fácil". Ele contesta:

—Tem essa confusão, essa caricatura da boemia e de figura carimbada. Se fosse verdade, eu estava todo dia no Braseiro — diz, citando o point do Baixo Gávea. — Vou para onde tem bom samba, vivo na rua, é uma das coisas que mais amo. Aí misturam essa coisa como se fosse fácil me encontrar.

Recentemente, um site fez uma lista de programas onde esbarrar com Carrão — como o Bip Bip e a Feira das Yabás, em Madureira.

— Me pediram para indicar programas legais a quem chega à cidade, mas colocaram num tom como se eu estivesse dando dicas de onde pessoas solteiras podem me encontrar. Foi estranho.

'Não sei jogar o jogo das redes sociais'

Há alguns meses, o nome do ator foi parar nos trending topics do Twitter depois que o fim da relação com a atriz Chandelly Braz, com que foi casado por dez anos, se tornou público.

Amigas criaram até um grupo de Whatsapp para disparar alertas sempre que ele fosse flagrado em um rolé carioca. No Twitter, houve uma espécie de leilão: "Humberto Carrão solteiro. Amigas frequentadoras das rodas de samba, blocos de carnaval e botecos, conto com vocês", tuitou uma menina.

— Foi machista. Essa exaltação do solteiro... A coisa não é dividida da mesma forma para os dois lados. Achei que foi pouco cuidadoso com o casal, principalmente, com a mulher — critica ele, que mantém a amizade (e divide os cuidados com o cachorro Matita) com Chandelly.

Carrão é discreto. Raramente compartilha a vida pessoal nas redes. E não veste a carapuça de pegador. Seus últimos personagens indicam que ele procura fugir do rótulo também profissionalmente — embora seu papel na novela "Todas as flores" seja um dos vértices de um triângulo amoroso formado com Letícia Colin e Sophie Charlotte.

—Não sou seduzido pelo lugar de galã, nem no trabalho e nem na vida. Isso é projeção de Twitter e eu não compro — garante ele, que viu seu número de seguidores no Instagram quase triplicar nos últimos meses.

Para o ator, "tratar seguidor como patrimônio é uma doença do nosso tempo".

— Acho triste quantidade de seguidor ajudar a escalar ator. Um milhão de seguidores significa que você vai ganhar mais no seu salário, nas propagandas. Então, não pode perder seguidor nem se comprometer. Eu não tenho problema em perder seguidor, ainda mais por postar o que acho importante — afirma. — Não sei jogar esse jogo das redes sociais e não tenho interesse. E isso tem a ver com a forma com que sempre olhei para a exposição, para o limite do que quero expor.

'Viver o fracasso foi bom para mim'

Humberto Carrão: 'Vivo na rua, é uma das coisas que mais amo. Aí misturam essa coisa de como se fosse fácil me encontrar' — Foto: Divulgação / Fernando Young
Humberto Carrão: 'Vivo na rua, é uma das coisas que mais amo. Aí misturam essa coisa de como se fosse fácil me encontrar' — Foto: Divulgação / Fernando Young

O fracasso foi fundamental para que Humberto Carrão mantivesse os pés fincados no chão. Depois de estrear aos 10 anos à frente de um programa educativo na TV Futura, "Alô, vídeo escola", o ator viveu o sucesso numa das edições de maior audiência de "Malhação" (2004). Mas, quando a novela terminou...

— Lembro de ouvir um jornalista dizendo ao fotógrafo: "Não precisa fotografá-lo, a temporada acabou". Logo depois, fiz (a novela) "Bang bang", que foi um fracasso retumbante. Aos 13 anos, entendi que as coisas passam. Viver o fracasso foi bom para mim — recorda.

A carreira de ator mirim começou por iniciativa do menino que fazia aulas de teatro, de instrumentos musicais (foi baterista e violonista de bandas na adolescência), cresceu frequentando museus e vendo os pais irem ao cinema três vezes por semana. Após passar no primeiro teste, nunca mais parou.

Mas foi com "Aquarius" que Carrão percebeu para que direção lhe interessava apontar a carreira. O filme de Kleber Mendonça Filho o fez ser visto com outros olhos.

— 'Aquarius' mudou a minha vida, me lançou a novas possibilidades, fazendo com que outras pessoas me conhecessem e tivessem vontade de trabalhar comigo — diz ele que, no longa, vive o filhinho de papai Diego. — O filme e o personagem eram tudo que sempre imaginei para a minha carreira. Diego tinha uma história parecida com a minha. Privilegiado, estudou em escolas consideradas maravilhosas. Conheço esse personagem, estudei nesses colégios que, na verdade, quase não falam sobre a história de seu país e formaram mil bolsonaristas, pessoas que não têm interesse... É a tal da "elite esclarecida", que de esclarecida não tem nada.

Protagonista de Aquarius, Sonia Braga conta que teve "conexão imediata" com o parceiro.

— Parecia que nos conhecíamos desde sempre. Nossos personagens eram antagonistas, brigávamos em cena, mas nos intervalos nos abraçávamos como velhos amigos. Estabelecemos uma cumplicidade cênica — define. — Carrão é sutil, sensível, inteligente e profundo em suas construções. Daquele tipo raro de ator que, ao interpretar um personagem odiento, dá ao público um conhecimento do ódio e não o ódio em si.

Regina Casé, de quem Carrão foi filho em "Amor de mãe" e agora é genro em "Todas as flores", diz que o ator marca posição mesmo em papéis que nada têm a ver com seu pensamento.

— Pode estar fazendo até comédia ou qualquer bobagem que tudo dele vem de um lugar cheio de amor. Tanto que nessa novela, em que ele me odeia, ainda assim é amoroso com a personagem e comigo. Passa que não está gostando, mostrando como gosta de outras coisas — comenta Regina.— É um ator diferente. Consegue imprimir suas ideias mesmo num personagem que nada tem a ver com ele. E é um cara cheio de ideias boas.

"Marighella" sedimentou a escolha por projetos que discutissem questões do país. Também proporcionou a realização do desejo de trabalhar com Wagner Moura. O convite foi aceito antes mesmo de ler o roteiro, conta Carrão, que hoje cita André Novais, Marcelo Gomes, Gabriel Martins, Karim Aïnouz, Yasmin Thayná, Safira Moreira e Julia Murat como nomes com os quais gostaria de realizar projetos.

Inspirada em um livro que contribuiu para mudar o debate sobre segurança pública no país, a série "Rota 66 — A polícia que mata", chega em um momento oportuno, na opinião do ator. Uma época em que a política está no centro do debate dos brasileiros.

— O Brasil fez a escolha de voltar ao passado mais sombrio e violento. Acho doido como o país foi capaz de produzir uma geração de 20 e poucos anos já saudosista, esse personagem que costuma ser um velho com saudade do que viveu — analisa. — Hoje, é o jovem da minha geração que tem saudade de viver numa democracia, num lugar interessado por sua cultura, por seu povo. É o museu que pega fogo, a Cinemateca... Um lugar sem memória, sem cultura é melhor para o fascismo.

Ele se recorda de assistir a um documentário em que alguém comentava sobre o fato de que Glauber Rocha sempre chorava quando falava do Brasil. Carrão lembra de pensar: "Que exagero".

— Hoje, eu entendo. A gente está muito machucado — diz. — Penso nos idosos, gente que lutou, que viveu uma ditadura e viu o monstro nascer de novo. É triste, tem velho morrendo de Brasil, de tristeza.

Mas como diz a letra do samba "Conselho", de Jorge Aragão, "tem que lutar, não se abater". O ator, então, prefere afirmar o lado positivo e deixar-se embalar pela sugestão de Xande de Pilares em "Tá escrito": "Erga essa a cabeça, mete o pé e vai na fé".

— Porque vejo também uma vontade de empurrar para fora o autoritarismo, a violência, de voltar a ser uma democracia, de fazer do Brasil, mais uma vez, um lugar luminoso.

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