Cultura
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Por Gabriel Trigueiro, Especial Para O GLOBO *

Kanye West, hoje oficialmente Ye, já foi o maior rapper em atividade e uma das maiores mentes criativas do século XXI. Revolucionou não só o rap, mas a música pop e a indústria cultural, pelo menos algumas vezes ao longo das duas últimas décadas. A quem não acredita, convém examinar a sua obra. Um de seus principais ábuns, o “My beautiful dark twisted fantasy” (2010), já foi classificado por ninguém menos que Elton John como “tão importante quanto o Sgt. Peppers”. Foi Paul McCartney quem afirmou que em suas duas colaborações com o rapper, “FourFiveSeconds” (2015) e “Only One” (2021), o processo criativo foi semelhante ao de suas parcerias com John Lennon. Não é pouco.

No entanto, de uns tempos pra cá, a coisa desandou. Nem é preciso entrar em sua vida privada, marcada pelo casamento tumultuado com Kim Kardashian, mãe de seus quatro filhos, e tretas com outros músicos. Sua atuação na esfera pública se tornou muito mais controversa.

Kanye West com Kim Kardashian, em 2015 — Foto: TIMOTHY A. CLARY / AFP
Kanye West com Kim Kardashian, em 2015 — Foto: TIMOTHY A. CLARY / AFP

Começou lá atrás, em 2013, com aquela jaqueta com manga estampada pela bandeira dos Confederados — o Sul escravocrata derrotado na Guerra Civil nos EUA. Quando perguntado a respeito, deu uma resposta concisa: “Essa bandeira agora é minha”. Parecia genial, uma reapropriação de uma iconografia de supremacistas brancos, feita por um artista negro, como um espólio de batalha.

Esse episódio visto em retrospecto ganhou outras cores, muito mais soturnas. Onde insistíamos em enxergar a ironia de um artista habilidoso, à moda de um Duchamp, havia apenas confusão mental e uma disposição reacionária inarticulada.

Desde esse episódio, Kanye apoiou publicamente Donald Trump e afirmou que “a escravidão foi uma escolha”. No fim das contas, seu argumento é tão simples quanto equivocado: se baseia na ideia de que “negritude” (“blackness”) é uma camisa de força, e uma espécie de, sim, vitimismo.

Kanye West em encontro com Donald Trump em 11 de outubro de 2018 AFP — Foto: AFP/AFP
Kanye West em encontro com Donald Trump em 11 de outubro de 2018 AFP — Foto: AFP/AFP

Essa visão de mundo não é original. É discutida, por exemplo, à exaustão, com erudição e elegância, por Christopher Alan Bracey, estudioso do conservadorismo negro (black conservatism). Segundo o jurista, os conservadores negros se pautam pelos seguintes princípios: 1) crença nas instituições americanas e na capacidade que os negros têm de ascender socialmente a partir de seus próprios esforços, em uma lógica individualista e meritocrática; 2) um pensamento no qual prevalece menos um impulso de revolucionar a ordem social, e mais uma atitude de “acomodacionismo”, pautada pelo desenvolvimento econômico interno da comunidade; 3) a ideia de que o sucesso capitalista individual deve ser priorizado diante de qualquer ação do governo que busque obter igualdade; 4) uma ética protestante afro-americana, baseada em moralismo, deferência e uma política de respeitabilidade.

Essa tradição intelectual passa pelo líder comunitário Booker T. Washington, chega em Clarence Thomas, juiz conservador da Suprema Corte dos EUA, e desemboca em Kanye. Segundo essa linha, como negro você deve ser capaz de extrapolar qualquer expectativa racial que a sociedade tem a seu respeito. Kanye crê que é capaz de ressignificar os símbolos do supremacismo branco, e portanto de esvaziá-los de seu significado racial original.

Ele recentemente foi visto na Semana de Moda de Paris, com a extremista de direita Candace Owens, ambos com uma camiseta com a frase “White lives matter” — resposta à campanha “Black lives matter”, contra violência às pessoas pretas. Esta semana, aliás, disse num podcast que George Floyd morreu por culpa de opióides e não por violência policial. Foi processado pela família da vítima em US$ 250 milhões.

Não tem muito tempo, um podcaster brasileiro, Monark, então apresentador do Flow, defendeu que um partido nazista deveria ter sua existência legal autorizada, baseado em uma interpretação absoluta do direito de liberdade de expressão. Kanye faz algo análogo ao flertar com a iconografia do supremacismo branco.

Ao longo do século XX, o fascismo e o supremacismo avançavam através da marcha e defesa vocal de seus partidários. O que o século XXI nos ensinou é que você não precisa ser fascista, nem tampouco supremacista, para permitir que ambos avancem. Monark não é nazista e Kanye não é supremacista. Mas ambos foram ou são inocentes úteis desses movimentos. Kanye é no mínimo, como já disseram, “um racista por procuração”. É triste assistir a alguém que nasceu para ser um gênio da sua geração optar por ser apenas o Monark.

* Gabriel Trigueiro é doutor em História Comparada pela UFRJ e escreve na newsletter Conforme Solicitado

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