Cultura
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Por Eduardo Graça — São Paulo

Quando Bruno Fagundes viu na Broadway a encenação de Stephen Daldry (diretor de “Billy Elliot”) de “A herança”, premiada em 2020 com quatro Tonys, incluindo melhor drama, após celebrada temporada londrina, o ator já se debatia com questões que ultrapassavam as fronteiras do palco.

— A peça me inspirou a falar publicamente sobre minha identidade sexual e a entrar um profissional diferente nos ensaios da produção brasileira — diz.

Filho dos atores Mara Carvalho e Antonio Fagundes, Bruno dividiu com o público este ano, com uma foto feliz em suas redes sociais, o namoro com Igor Fernandez, seu colega na novela “Cara e coragem”, da TV Globo.

— Este projeto também me fez pensar no que eu, aos 33 anos, posso fazer para a geração LGBT que vem depois da minha. O que quero deixar, sem pretensão, de legado? — questiona-se.

“A herança” é resposta óbvia. Bruno idealizou a primeira versão em língua diferente da original da peça com seu amigo Zé Henrique de Paula, outro fã da montagem de Daldry. Também é de Zé a direção do musical premiado como melhor espetáculo de 2022 pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), “Brenda Lee e o Palácio das Princesas”, sobre a travesti pioneira da luta pelos direitos LGBTQIAP+ no país.

“A herança” também trata dos avanços da comunidade gay, mais precisamente a norte-americana. Com cinco horas e meia de duração, divididas, nas primeiras semanas, em duas apresentações de 2h30 cada, a peça, que estreia no dia 9 de março no Teatro Vivo, em São Paulo, é, em definição cunhada pelo próprio Fagundes, uma “saga gay contemporânea”.

Escrita pelo americano Matthew López, se inspira em “Retorno a Howards End”, de E.M. Forster. Só que os embates e reflexões sobre classe e avanços de direitos têm como cenário não o Reino Unido do início do século XX e sim gerações da comunidade gay de NYC desde a explosão da Aids.

A história gira em torno de um grupo de escritores, suas epifanias e dores. O jogo teatral inclui a abolição da coxia: as transformações se dão às vistas do público. Onze atores, entre eles Felipe Hintze e André Torquato, em elenco pautado pela diversidade, interpretam 25 personagens. E, no solitário papel feminino, Miriam Mehler encarna personagem repleto de simbolismo, vivida anteriormente por Vanessa Redgrave e Lois Smith.

“A herança” paulistana mantém, por obrigação contratual, as referências originais, com cenário na Costa Leste americana. Eric, vivido por Bruno, é um ativista liberal que se apaixona por Henry (Reynaldo Gianecchini), eleitor do Partido Republicano. Eles encarnam arquétipos de gays de gerações e visões de vida diferentes.

Eric é companheiro de Toby (Rafael Primot), que não tem o pedigree dos demais e busca a ascensão social. Já Henry, rico, é dono, com Walter (Marco Antonio Pâmio), de uma mansão central para a trama, em outra ligação com “Howards End”. Eric e Henry foram batizados com o nome de personagens de Forster.

O encontro de Bruno e Giane com a peça se dá, contam, no momento em que ambos sentem desejo de pertencimento e mergulho na comunidade LGBTQIAP+.

— Pra mim, era necessário adentrar esse mundo, pela primeira vez, de lupa — diz Gianecchini. —Nunca frequentei bar e baladas gay. Não me sentia parte da comunidade, embora tivesse sempre muita empatia. Agora entendo importância de se agrupar pra lutar pela própria existência. E de se colocar na frente o lado humano, para além da parada sexual.

Bruno destaca a “paixão revolucionária” de Eric e Henry:

— Um não poderia ser mais oposto ao outro. Mas as certezas, quase sempre, estão no terreno do autoritarismo. As dúvidas, no da democracia. A peça oferece questionamentos a nós e ao público, gays ou não, sem impor verdades.

Desafio à polarização rasteira

Quando se apaixonou por “A herança”, Bruno Fagundes decidiu que não protagonizaria a peça em um espaço alternativo. Mesmo com as dificuldades de captação de recursos multiplicadas durante o governo de Jair Bolsonaro, avaliava ser quase um contrassenso não apresentá-la em um teatrão.

— É importante retratar nossa comunidade de uma maneira que não seja apenas marginal. Hoje, também estamos, e graças a tantos que lutaram antes de nós, no mainstream. Quis desmarginalizar a discussão — diz.

As cinco horas de espetáculo parecem não ter assustado o público. Até sexta-feira, a venda antecipada de ingressos já havia ocupado o equivalente a seis apresentações no Vivo.

— É como maratonar uma série, só que com o elenco ali, ao lado — traduz Bruno.

Já Gianecchini conta que as falas em que seu Henry questiona o que a comunidade gay de fato fez por ele o deixaram arrepiados.

— Ele desafia a polarização rasteira ao defender, com sofisticação, como a identidade sexual não é fator central na hora do voto dele. São diálogos corajosos — diz.

Henry perdeu amores e amigos para a Aids e tenta compreender em que dimensão o desastre o moldou.

— É como quando a gente faz terapia e se abre para questões mais internas. Há um momento em que a luz chega e nos abrimos para o que há de mais profundo em nós. A peça termina com a esperança de que isso aconteça — diz Giane.

Comparado a “Angels in America”, a obra-prima de Tony Kushner, “A herança” faz rir e chorar com intensidade quase igual. Catarse é a primeira palavra que vem a Bruno ao recordar a montagem de Stephen Daldry.

— E catarse coletiva. Como ficamos muito tempo juntos na plateia, cria-se um senso de comunidade. Lembro da troca de olhares com um senhor de uns 70 anos que estava ao meu lado. Ele tinha tatuagens, anéis, não sei de onde veio, as dores que viveu — diz. — Mas, quando terminou a segunda parte da peça, nos encaramos e estabelecemos uma comunicação não verbal, como quem diz: “Nessa discussão, neste momento, a gente se une”. Foi muito bonito. Você tem o ímpeto de abraçar a pessoa ao lado. E a gente precisa disso.

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