Cultura
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Por Maria Fortuna — Rio de Janeiro

Letícia Sabatella veste preto da cabeça aos pés. Daniel Dantas está todo de branco. As roupas com que recebem a repórter na casa da atriz resumem a dinâmica do casal: eles são opostos. Letícia é do dia, acorda cedo. Fala baixo e transmite uma sensação de paz de quem parece funcionar em outra dimensão, flutuando a dois dedos do chão.

Daniel é da noite. Passa a madrugada desperto, lendo. Só dorme quando a alvorada aponta na janela. Reflexo da infância, quando se recusava a ir para a cama enquanto as festas dos pais comiam soltas na sala de casa com Baden Powell ao violão. Fala mais com os olhos, e parece estar sempre meio confuso, perturbado por pensamentos.

Os namorados, claro, têm coisas em comum. São atores intensos e aplicados nos estudos, e dividem o interesse pelos mistérios da existência humana. Agora, escolheram a Guerra de Troia como metáfora para falar sobre a batalha que é existir. Propõem esta reflexão a partir da montagem de “Ilíada”, que estreia hoje, no Teatro XP, na Gávea, Zona Sul do Rio de Janeiro.

Os namorados, claro, têm coisas em comum. São dois cabeções, atores intensos e aplicados nos estudos, que dividem o interesse pelos mistérios da existência humana. Agora, escolheram a Guerra de Tróia como metáfora para falar sobre a batalha que é existir. Propõem essa reflexão a partir da montagem de "Ilíada", que estreia na próxima sexta-feira (3), no Teatro XP, na Gávea, Zona Sul do Rio de Janeiro.

Letícia Sabatella e Daniel Dantas em "Ilíada": a Guerra de Troia como metáfora da existência humana — Foto: Divulgação
Letícia Sabatella e Daniel Dantas em "Ilíada": a Guerra de Troia como metáfora da existência humana — Foto: Divulgação

O projeto marca a primeira parceria profissional dos dois. O espetáculo pinça dois momentos específicos do poema épico de Homero, que narra acontecimentos da guerra de dez anos entre gregos e troianos. Os dois não contracenam. Cada um apresenta seu monólogo, que dura entre 20 e 30 minutos.

Daniel encena o Canto 1, sobre o confronto interno entre os próprios gregos e o que levou a isso. Letícia apresenta o Canto 20, com o retorno do herói Aquiles ao campo de batalha. O texto “traz a manifestação de arquétipos ancestrais que nos explicam”, segundo a atriz. Dá conta, na opinião dela, da “ânsia sanguinária da Humanidade”.

— É um jogo de forças, das dimensões que temos de raiva, ira, pavor, covardia, sagacidades, truculência. É como se elaborasse, e ridicularizasse também, essa sede de poder e de conquista do ser humano. Como se estivéssemos tratando das nossas condições, desejos e medos, como se conseguíssemos compreender onde chegamos e porque. Estamos nos reavaliando e, aí, vamos aos gregos e entendemos 2023. Pensamos: 'Viemos de lá' — observa Letícia. — Acho que precisamos dessa poética, dessa cura do nosso imaginário que foi capturado por tanta fake news, de tanto mito errado sobre a realidade que a gente viveu.

Daniel destaca que, além de ser um resumo da civilização e da alma humana ("com problemas como inveja, vaidade, falta de educação, tudo tão atual", diz, com risinho de canto de boca), "Ilíada" é também um prato cheio para o exercício de seu ofício. Oferece a possibilidade de navegar por diversos gêneros, como comédia, drama, tragédia. O ator ressalta ainda a importância de insistir em fazer coisas "não tão fáceis" num momento em que a comunicação é regida por memes e figurinhas de WhatsApp.

— Temos feito muita concessão à superficialidade. E não há nada de superficial ali, é tudo próximo do essencial. Não há mecanismo rapidinho em que se manda uma imagenzinha e está resolvido — observa. — Isso é um pouco o que a arte pode oferecer: buscar dar à plateia o que ela quer e o que ela ainda não quer, aquilo que vai aprendendo a gostar. Inicialmente, essa linguagem pode parecer uma barreira, mas é como acontece com um surfista de onda grande: se não conseguir surfar aquela onda, a queda é terrível, mas se conseguir, a sensação é única, espetacular.

Filho de mãe jornalista com dificuldades em lidar com uma criança que ainda não sabia falar, Daniel teve que se virar no verbo desde cedo. Se expressar bem era especialidade da casa. Vem daí o apreço do ator por uma “linguagem que obrigue a pensar e que não seja tão passível de distorções”.

— Defender uma linguagem menos superficial é um ato politicamente importante. Há anos, reforçamos, por exemplo, a linguagem militarizada. Estou falando do pensamento e da política como um todo. Como desmilitarizá-la com os jogadores de futebol tendo um cabelo militar? Com todo mundo chamando de guerreiro quem faz alguma ação de valentia? O pensamento militarizado normatiza coisas que não deveríamos normatizar. Dar um tiro num cara porque alguém discordou de você, resolver discussão com bala, não é algo normatizável — alerta. — Outro exemplo é a linguagem religiosa: à medida em que entra na cabeça, age imediatamente como um vírus. Se fecha, estabelece um perímetro defensivo e começa a querer se comunicar. É como se o cérebro funcionasse em outro circuito que não tem a ver com a razão. E aí não adianta usar a razão para dialogar. O que eu acho interessante é "dessuperficializar" o pensamento. Voltar a ter coragem de pensar por si mesmo, checar. Precisamos recuperar o tesão da palavra —, continua ele, que aprendeu grego na pandemia.

Daniel e Letícia: admiração mútua — Foto: Reprodução
Daniel e Letícia: admiração mútua — Foto: Reprodução

E o que não falta em "Ilíada" é palavra. A produção preparou um glossário para ajudar o público a compreender o que está sendo dito em cena. É que como os gregos não usavam a terceira pessoa, há uma série de expressões usadas para se referir ao mesmo personagem, de acordo com seus atributos. O desafio imposto pelo texto é igual para todos os envolvidos, garante Letícia.

— Para Homero, Aquiles, para nós, que fazemos a peça e para a plateia. É um espaço para você sair da dimensão cotidiana, ir para outro lugar que te ajude a entender o seu cotidiano, se ver espelhado de outro lugar. Todo mundo sai pensando nas coisas que sentiu em relação ao vizinho, ao adversário, a alguém com quem antagoniza de algum modo.

A agilidade do formato ajuda a pavimentar uma comunicação mais direta. São performances curtas, que duram entre 20 e 30 minutos, dinâmica que Letícia diz ter entendido ser necessária no mundo corrido pós-pandemia.

A direção da peça é Octavio Camargo e usa como base a tradução em verso de Manuel Odorico Mendes (datada de 1874), primeiro tradutor da obra do pensador grego para o português. O texto de Odorico é famoso pelo humor, pela linguagem subliminar e pela invenção de palavras. Dizem que Guimarães Rosa bebeu naquela fonte...

A ideia de montar o espetáculo surgiu após Daniel e Letícia apresentarem os dois cantos do poema na abertura do 32º Festival de Inverno da Universidade Federal do Paraná, em 2022. O texto já integrava o repertório da Cia Ilíadahomero de Teatro, que realiza pesquisas sobre a obra desde 1999 e com a qual a atriz já havia trabalhado. Ao ser apresentado pela namorada à turma de Curitiba, o ator se encantou.

'Não estabelecemos a relação como casamento'

Foi pouco antes da crise sanitária Letícia e Daniel começaram a namorar, em 2019. Um clique “roubado” durante passeio num shopping carioca anunciou a novidade em sites de fofoca.

— Tiraram uma foto de a gente se beijando, e a Letícia me perguntou o que eu achei. Só pensava que precisava botar mais cabelo aqui, ó (aponta para o cocuruto). Apareci publicamente, não como artista, mas como pessoa, no dia em que eu saí com Letícia — diverte-se Daniel, com mais de 40 anos de carreira.

Os dois não estabelecem a relação como casamento. Moraram juntos na pandemia e, agora, ele passa um tempo na casa da namorada porque seu apartamento está em obras. Mas já decidiram que não vão dividir o mesmo teto.

Os dois não estabelecem a relação como casamento. Chegaram a morar juntos durante a pandemia e, atualmente, Daniel passa um tempo na casa da namorada enquanto seu apartamento está em obras. Mas já decidiram que não vão dividir o mesmo teto.

- Não dá para morar junto. A gente é muito diferente, somos opostos - define o ator. - Hoje fico pensando que todos os meus outros casamentos deveriam ter sido assim. Num deles, eu morava num bloco, e ela no outro. Era ótimo. Quando a gente queria se ver, atravessava o play e pronto.

— Não dá para morar junto. A gente é muito diferente, somos opostos — define o ator. — Todos os meus outros casamentos deveriam ter sido assim. Num deles, eu morava num bloco, e ela no outro. Era ótimo! Quando a gente queria se ver, atravessava o play.

Inspiração mútua

No palco, um inspira o outro. Prestes a fazer 52 anos, na próxima quarta-feira, Letícia conta que sempre admirou profissionalmente o parceiro, 17 anos mais velho:

— Daniel é exemplo máximo de um ator de um artista que eu persigo, tem uma história. Sou apaixonada pelo trabalho dele. É uma honra imensa dividir o mesmo palco.

Ele devolve ressaltando que é bom estar em cena com alguém em quem confia, “que faz o dela lindamente”. E assume que “roubou” da companheira gestos com os quais ela marca personagens. Os punhos cerrados colados à frente do peito para “desenhar” Aquiles é um deles.

Letícia e o gesto que usa para 'desenhar' Aquiles, 'roubado' por Daniel — Foto: Divulgação
Letícia e o gesto que usa para 'desenhar' Aquiles, 'roubado' por Daniel — Foto: Divulgação

Mas um não se mete na performance do outro. Ai dele se tentar fazer observações sobre a performance dela...

—Ele pergunta: “Posso dar uma opinião?” Respondo: “Não!” Ele respeita, e tá tudo certo. Eu é que não vou perder o gostinho de fazer do meu jeito — diz Letícia. — É diferente o modo com que cada um de nós faz o seu. Mas o que ele faz me enriquece, é como se fosse uma competição positiva.

Com “Ilíada” na praça, resta entre eles a vontade de contracenar, planos que pretendem colocar em prática. Por enquanto, cada um segue no seu quadrado. Daniel está em dois seriados: “Rio Connection”, dirigido por Mauro Lima e Toni Vanzolini, já lançado nos Estados Unidos; e o inédito “Cenas de um crime”, de Izabel Jaguaribe e Giovanna Machline para a Paramount.

Letícia se dedica a uma série em que percorre o Brasil profundo para mostrar lideranças femininas, de indígenas e quilombolas a mãe de santo trans.

— É um material maravilhoso para a minha arte — vibra a atriz.

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