Cultura
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Por Maria Fortuna — Rio de Janeiro

Durante um bom tempo, Adriana Calcanhotto andou pelo mundo com dia certo para voltar. Nem precisava combinar com a produção dos shows. Já estava entendido: a cantora e compositora entraria no primeiro voo após os compromissos e pegaria, o mais rapidamente possível, o rumo de casa.

Após a morte de sua companheira, a cineasta Suzana de Moraes, em 2015, a prática deixou de fazer sentido em sua vida. “Voltar hoje? Amanhã? Cedo? Tarde? Para que voltar? Voltar para onde?”, ela passou a questionar, num processo que se confundia com o próprio luto. Adriana, então, constatou:

— Não há mais volta. Agora, estou só indo.

Este conceito nômade que remete à famosa instalação de Lygia Clark “A casa é o corpo” foi assentando dentro dela até desaguar nas canções que a artista lança amanhã com o disco “Errante” (que sai pelo selo Modern Recordings).

São 11 músicas que ela vem compondo desde 2016. Estavam guardadas no baú porque não tinham a ver com seus últimos álbuns, “Margem”, de ambiência marítima, e “Só”, de crônicas da pandemia. Ao entregá-las ao público, a artista se sente “aliviada”. Livre de uma espécie de encanto que a fazia acreditar que, enquanto não as libertasse, não comporia outras mais. O que, de fato, acabou acontecendo. Mas, agora, o jogo zerou.

A capa do 'Errante', álbum com maior distância de tempo entre a gravação ao lançamento na carreira de Adriana  — Foto: Reprodução
A capa do 'Errante', álbum com maior distância de tempo entre a gravação ao lançamento na carreira de Adriana — Foto: Reprodução

Apesar de a maioria das letras carregar o peso da tristeza — falando de amor, fim de amor, de luto, errância e impermanência —, “Errante” chega afirmando a alegria, garante sua autora.

— O luto é uma doença crônica. Não é escolha. É um negócio que se apresenta e você tem que lidar. Não vai embora. Já a alegria é uma escolha. E a minha escolha é a modernista pela alegria — explica ela, que lança mão da frase de Oswald de Andrade no Manifesto Antropofágico (“a alegria é a prova dos nove”) na canção que abre o disco.

O foco no alto-astral acontece após Adriana sair (em 2022) de um curto relacionamento com a atriz Maitê Proença, assunto do qual, sempre discreta, ela prefere não falar:

— Não comento declaração de outra pessoa (em uma entrevista, Maitê disse que queria que a namorada fosse homem). Acho que o relevante para quem acompanha o meu trabalho é se estou feliz ou infeliz. Neste momento, estou felicíssima.

Voltando ao disco, a compositora diz que a errância, conceito que permeia a obra, também é uma escolha. E ficou ainda mais evidente na trajetória de Adriana depois que ela descobriu a ascendência judia. Por meio do estudo de sua árvore genealógica, encomendado por uma amiga, a cantora soube que seus antepassados fugiram da Inquisição no século XVI e migraram para o Brasil.

— Era algo que eu já intuia e se confirmou. Depois, fiz aquele teste de DNA, que deu 10% de sangue judeu. Também fiz teste de DNA e deu 10% de sangue judeu. Aí, linka a coisa da escolha com o fato de já ter no meu sangue uma errância anterior — diz. — Escolhi errar pelo mundo levando canções, ofício do trovador, e cruzo com pessoas que estão errando por outros motivos. Por não terem nacionalidade, por causa da guerra, por serem refugiados...

Nara Leão e Orlando Silva

Se, por um lado, Adriana trabalha a ideia de “desenraizada” (a música “Prova dos nove” diz “Tenho o corpo italiano/ O nascimento no Brasil/ A alma lusitana / A mátria africana), ela mostra que sua raiz está plantada na brasilidade regando o álbum com funk, xote, samba de roda, maxixe...

— Quando estava em Portugal (a artista deu aula de composição na Universidade de Coimbra), perguntavam: “Então está portuguesa, europeia?” E eu: “Ao contrário, quanto mais me distancio geograficamente do Brasil, mais sinto que a coisa brasileira é a minha.” É aquilo: falando do mundinho, está sendo do mundão. Meu passaporte é brasileiro — crava. — E o disco me deu a certeza de que minha alma é nômade e não acha graça nenhuma em ficar confinada.

“Errante” é, na carreira de Adriana, o trabalho com maior distância no tempo entre registro e lançamento. Foi gravado no fim de 2021, numa “janela” aberta em meio à pandemia . E é fruto da convivência íntima entre a cantora e os músicos Alberto Continentino, Davi Moraes, Domenico Lancellotti, Jorge Continentino, Diogo Gomes e Marlon Sette, que passaram nove dias instalados numa casa-estúdio em Araras, na Serra Fluminense. Na calmaria do mato, sem distrações e ruídos da cidade, a turma construiu junta a sonoridade jazzística que forja o álbum.

— Foi um lance livre, de a gente tocar sem grandes dogmas. Não precisávamos conversar muita coisa, saíamos tocando — conta ela.

Uma curiosidade é que Adriana toca violões que pertenceram a Nara Leão e a Orlando Silva:

— Tenho comigo uma série de violões que foram de artistas gigantescos e estão, digamos, sob minha custódia. São de pessoas que não os usam e acham melhor que fiquem comigo. Eu concordo. Porque eu cuido, toco, já compus nesses violões. Eles são que nem barco: não pode deixar parado, senão o bicho sofre — brinca. — O do Orlando Silva chegou afinado em mi bemol, mais grave, o violão fica mais "gordo". O que foi ótimo, porque, com o tempo, a voz da gente vai ficando mais grave. Em vez de mudar os acordes das minhas canções, abaixo o tom do violão. O da Nara tem a afinação natural em mi. Então, mantive os dois e, dependendo do que estava fazendo, usava um ou outro.

'Só dá Gal Costa no meu algorítimo'

Adriana Calcanhotto: 'O relevante para quem acompanha o meu trabalho é se estou ou não feliz. Neste momento, estou felicíssima' — Foto: Divulgação / Leo Aversa
Adriana Calcanhotto: 'O relevante para quem acompanha o meu trabalho é se estou ou não feliz. Neste momento, estou felicíssima' — Foto: Divulgação / Leo Aversa

A cabeça de Adriana Calcanhotto está funcionando “em modo bivolt”. De um lado, armazena as coordenadas do show de “Errante”, que estreia em maio em Coimbra. Do outro, as de “Gal — Coisas sagradas permanecem”, tributo à cantora morta no ano passado que chega aos palcos dia 27 de abril, em Porto Alegre. O convite veio do produtor Marcus Preto, diretor artístico de álbuns e shows de Gal nos últimos nove anos.

A ideia da homenagem veio de Marcus Preto, produtor e diretor artístico de álbuns e shows de Gal nos últimos nove anos, depois que a equipe de Gal manifestou desejo de celebrá-la. O nome de Adriana, que entrará em cena com parte da banda que vinha acompanhando a tropicalista no show "As várias pontas de uma estrela", surgiu instantaneamente, já que a gaúcha já havia substituído a baiana no festival de uma rádio paulista.

— Preto citou a admiração mútua que tínhamos uma pela outra e disse que, como ela, eu canto desde os poetas mais rarefeitos até as canções mais populares. Respondi: “Isso não é coincidência, aprendi com ela” — diz Adriana, que será acompanhada pela banda de Gal. — Estar nesse projeto me dá a possibilidade de viver de verdade esse luto. Está difícil de acreditar. Porque é muito duro um mundo sem Gal. A gente não ficou íntima, mas, toda vez que nos encontrávamos, era muito afetuoso.

Adriana conta que, como tem pesquisado muito sobre a baiana, agora, seu algoritmo só lhe entrega conteúdo de Gal. O desafio é escolher o repertório em meio a tantas canções maravilhosas. O critério tem sido pensar não somente nas que foram importantes na trajetória da homenageada, mas também nas que marcaram Adriana. “Esquadros”, composta por Adriana e gravada por Gal, é certa. “Volta”, de Lupicínio Rodrigues, também:

— Conhecia Lupicínio sem me dar conta. Ouvia tocando na rua, na rádio... Gal me fez vê-lo de uma maneira reveladora e nova para mim. Porque as gravações dela são definitivas. Tem músicas que ninguém gravou depois porque... que sentido faria?

Canções feitas para ela, como "Meu nome é Gal", "Recanto escuro" (Caetano Veloso) e "Caras e bocas" (Caetano e Maria Bethânia) são outras certezas. "Socorro" (Arnaldo Antunes e Alice Ruiz) e "Vapor barato" (Jards Macalé e Waly Salomão), algumas canções dos tais poetas, também terão lugar no set list.

Com tanto trabalho pela frente, Adriana diz que nem consegue pensar na Academia Brasileira de Letras. A informação de que a cantora se candidataria a uma vaga na instituição ganhou força após a morte da professora Cleonice Berardinelli (1916 - 2023), Dona Cleo.

— Por causa da minha relação de amizade com a Cleo, fazia sentido e a quantidade de amigos que tenho lá (Gilberto Gil, Fernanda Montenegro, Rosiska Darcy, Zuenir Ventura e Cacá Diegues) é um atrativo. Mas agora só penso nos shows. Depois vejo issso - diz a compositora que deve voltar a dar aulas na Universidade de Coimbra em 2024.

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