Cultura
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Por Emiliano Urbim — Rio de Janeiro

Nos anos 1700, o filósofo iluminista Jean-Jacques Rousseau já dizia: “Quando o povo não tiver mais o que comer, comerá os ricos.” Se o canibal ainda poupa o capital, o audiovisual faz o festim. Nos últimos anos, séries e filmes têm devorado a elite em sátiras cada vez mais cruéis, nas quais a concentração de veneno acompanha a de renda.

O banquete teve como entrada a série “Succession”, que chegou em 2018 e cuja quarta e última temporada estreia hoje na HBO. Como o nome indica, a dramédia criada por Jesse Armstrong mostra o destrambelhado processo de sucessão no conglomerado de mídia da família Roy. Sucesso de público e crítica, “Sucession” pavimentou o camarote VIP para outras tramas que zombam dos zilionários. Vieram na sequência os mistérios agathachrísticos de “Knives out”, as férias frustradas de “White Lotus”, as cinderelas reversas de “É tudo meu”, a filantropa acidental de “Loot”, o desalentado cruzeiro de “Triângulo da tristeza” e o banquete indigesto de “O menu”.

Tostar ricos na Creuset das vaidades é um clássico das telas, mas especialistas notam uma novidade. Nas últimas décadas, as paródias da classe altíssima normalmente escolhiam o caminho da vingança ou do fascínio. Um precursor do primeiro tipo é o cultuado longa “O anjo exterminador”, do espanhol Luis Buñuel, de 1968; do segundo, os novelões americanos “Dallas” e “Dinastia”, campeões de audiência nos anos 1970 e 1980. Nesta safra atual, a ênfase seria na tiração de sarro mesmo.

Michel Alcoforado, antropólogo especializado em consumo e comportamento, analisa que estes filmes e séries trafegavam em uma linha tênue que ia da denúncia (“Veja eles esbanjando enquanto o resto sofre!”) ao deslumbramento ( “Como é ter um jato particular?”).

— No capitalismo tardio, em que sonhos de revolução social e de ascensão social se tornaram distantes, a denúncia e o deslumbramento perdem força. Nos resta o deboche — diz o fundador da consultoria Consumoteca. — Pode parecer pouco, mas debochar é uma forma de troca. Sei que não vou ter a grana do Elon Musk, mas rir da vida que ele leva é uma forma de conexão. É como se a gente dissesse: “Estamos de olho.” Dá uma ilusão de que talvez eles criem um pingo de vergonha.

Estas produções não poupam para mostrar todo o ridículo que o dinheiro pode comprar. Em “Succession”, os Roy vão da reunião A para a reunião B cada um no seu helicóptero, o primogênito pede casualmente “uns cem milhõezinhos” (de dólares) e ninguém sabe ao certo quantas mansões a família possui. Podemos também lembrar do bilionário do filme “Glass Onion: um mistério knives out”, que restringe a cura da Covid entre seus amigos diferenciados, e da passageira do navio de “Triângulo da tristeza” que exige que a tripulação pare tudo para dar um constrangido mergulho no oceano.

Como lembra o psicanalista Christian Dunker, co-autor de “Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico”, finalista do último Jabuti, estas sátiras flertam com o absurdo para tentar acompanhar o absurdo da própria realidade.

—É uma nova representação dos ricos, em que a riqueza perde sentido. Passa a ideia de que, se eu enriquecer, vou me transformar num boçal, num hipócrita, sem consciência social, que vive em uma bolha, com medo do mundo real. Sinaliza irracionalidade, futilidade, inconsequência — diz Dunker, que cita a nobreza criticada por Rousseau. — É aquela postura da Maria Antonieta: “Se eles não têm pão, por que não comem brioche?” Podia estar na boca de uma hóspede dos hotéis de “White Lotus”.

Boca suja

Além de alienação, há também generosas porções de mau-caratismo. Em “Succession”, para deleite do espectador, ninguém presta, a começar pelo patriarca Logan Roy (Brian Cox), inspirado no magnata das comunicações Rupert Murdoch — que, aos 92 anos, prestes a casar pela quinta vez e sem largar o osso da empresa, continuou municiando o criador da série, Jesse Armstrong. Logan manipula seus quatro filhos, herdeiros sem noção, sem escrúpulos e, curiosamente, sem papas na língua. Um levantamento do site The Ringer contou 2.071 fucks e derivados temperando os 29 episódios das três primeiras temporadas da série. É o retrato de uma turma sem receio de ser vulgar —um exemplo notório seria Donald Trump e sua absoluta falta de decoro.

Patrícia Kogut, colunista de TV do GLOBO, ressalta que protagonistas antipáticos “ou, no mínimo, com personalidade complexa” são obrigatórios nos clássicos da chamada Era de Ouro da televisão, a começar pelo mafioso suburbano Tony Soprano. Kogut vê as atuais sátiras da riqueza com uma receita que equilibra “uma dose de realismo com uma dose de exagero”:

— Tem esse lado de caricatura, de fábula. Mas uma atenção para detalhes realistas que dão brilho. Entre tantas coisas, podemos ressaltar o figurino escolhido para retratar esse mundo dos ultrarricos. São roupas low-profile, simples, de quem está muito acima das grifes. E eles nunca estão usando casacos, nem no inverno pesado. Porque eles estão sempre protegidos no carro, no helicóptero, no hotel... em qualquer lugar.

Crítico-chefe da Vanity Fair, Richard Lawson cunhou uma expressão para as atuais paródias da riqueza: eat-the-rich satire — “sátira coma-os-ricos”, referência à frase de Rousseau que abre o texto na página anterior. Apesar de batizar o subgênero, ele admite que esperava mais. Em um artigo, ironizou a “moral da história” destes filmes e séries: “Essas pessoas são canalhas miseráveis e manipulam as alavancas do mundo, toscamente insensíveis às pessoas que vivem nele. Bem como a gente suspeitava!” Lawson não deixa de atentar para o fato de que, para chegarem às telas e serem divulgadas, estas produções precisam de muito dinheiro privado — ou seja, uma crítica muito extrema pode afastar financiadores vitais.

Influência nas novelas

Autor de um romance que retrata a classe alta brasileira, o elogiado “As sobras de ontem” (2020), Marcelo Vicintin concorda que, em alguns casos, a crítica podia ser mais efetiva.

— Acho que a sátira ganha quando os personagens manifestam sua alienação de forma consciente, quando sabem muito bem o quão deslocados da realidade eles estão e tudo bem, convivem com isso, e aceitam isso em nome de poder e dinheiro — diz Vicintin, que em seu próximo livro deve abordar novamente a elite nacional. — É um pano de fundo raro de se ver, com alguns exemplos mais antigos que mostram a aristocracia da França e da Inglaterra, mas em falta na produção contemporânea. Acho bom que surja, é parte do mosaico social.

No Brasil, especialistas apontam que ainda não surgiu um filme ou série que retrate este cenário atual dos ultrarricos, que parecem flutuar acima da realidade em suas coberturas. Mas a tradicional telenovela brasileira costuma tirar sua força dramatúrgica das interações do “núcleo pobre” com o “núcleo rico” e de eventuais reversos da fortuna. Bia Braune, ex-roteirista do Videoshow e autora de “Novelei”, série com Paulo Vieira que revisitava a história das novelas, compara a “sátira coma-os-ricos” com alguns clássicos nacionais.

— A novela “Beto Rockfeller” (1968) era tiração de onda com os ricos num tempo em que os Rockfeller representavam o que hoje são os Murdoch. Mas era um pobre querendo ingressar na alta roda, porque nossas tramas vivem dessa interação. A própria Odete Roitman (Beatriz Segall em “Vale tudo”), que tinha horror a pobre, precisou dar um jeito de acomodar na família a golpista Maria de Fátima (Gloria Pires) — diz Bia. — A semelhança com “Sucession” é que em folhetim brasileiro não tem cena de rico trabalhando, no máximo faz reunião. Em novela, só pobre trabalha.

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