Cultura
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Por Mariana Filgueiras, Especial Para OGLOBO — Rio de Janeiro

Das muitas entrevistas que fiz para a biografia do Marco Nanini, uma das mais impactantes foi a do ator e diretor Antonio Pedro. Eu o procurei porque ele dirigiu o Nanini muitas vezes no teatro – nos anos 70, sempre que uma peça dava errado, o Antonio Pedro era o diretor que chamavam pra apagar o incêndio. Justamente por ser um incendiário. Ele limava as cenas que considerava inúteis à dramaturgia, metia discussões políticas em textos cômicos, subvertia o texto original, deixava o ator livre para os cacos, provocava o elenco a ter mais autonomia no palco, se arriscava. E aquele estilo anárquico costumava resultar.

Numa tarde de outubro de 2021, conversamos longamente sobre todas as lembranças que ele tinha com o Nanini. O que mais me impressionou foi a sua memória. Aos 81 anos, ele ainda lembrava de cada detalhe das cenas. Descrevia tudo, dizia as frases no tempo perfeito do humor, e para quem está reconstruindo passagens que ocorreram há 40 anos… Isso é ouro. Além da cabeça impecável, contava tudo com paixão, como se estivesse dirigindo a minha recepção. Naturalmente, Antonio Pedro passou a ser o meu checador oficial das histórias dos anos 70: sempre que outro entrevistado não lembrava de algo, ou me contava um causo que não fazia sentido, eu ligava para o Antonio Pedro – e ele lembrava de tudo.

Quem ler a biografia do Nanini vai perceber quantos detalhes ricos têm as histórias que ele conta. Outra coisa que me chamava muito a atenção no Antonio Pedro de 81 anos era que ele não vazava ressentimento nas falas, não reclamava de não ser mais chamado para trabalhos ou de não ser mais entrevistado. Ele tinha plena consciência da revolução que fez nos palcos e na TV e de como isso tinha impacto na linguagem teatral brasileira – a exemplo da peça "Desgraças de uma criança", de 1972, em que ele adaptou uma comédia de costumes clássica de Martins Pena, escrita em 1846, para uma opereta debochada e transgressora que influenciaria todo o teatro besteirol dos anos 80.

Nas suas falas, divertidíssimas e muito filosóficas, ele tinha a segurança de quem tinha levado uma vida muito divertida. Com isso, não caía nas armadilhas da nostalgia ou do desdém. Um dia, Antonio Pedro me deu uma entrevista enquanto fazia uma mudança de apartamento em Copacabana, de calção, sem camisa, no meio das caixas de papelão. Todo encontro virava uma cena.

Ao saber da sua morte, essas memórias tão recentes vieram à minha lembrança, e voltei às transcrições das entrevistas que ele me deu para o livro, de onde selecionei os trechos inéditos a seguir. Deixo aqui como uma forma de homenagear esse ator e diretor imenso, completamente vidrado pelo ofício:

"A gente não pode se esquecer que interpretar, na língua de Shakespeare, é 'to play': brincar, jogar, tocar, lutar e representar. As pessoas se esqueceram de que interpretar é se divertir em cena, é se deixar afetar pelo outro. Esse é o ator-artista, como eu chamo. O que não se esqueceu disso".

"Quando cheguei para assumir a direção da peça 'Pano de Boca' (Fauzi Arap, 1975), acabei com aquele lance de laboratório e montei a peça em duas semanas. Nanini gostava de laboratório e pedia muito para que eu marcasse uma de suas cenas, um monólogo. Ele insistia, insistia. Eu dizia que achava um exagero marcar um ator no palco, que um ator devia saber o que fazer num palco sozinho: se sentava, se ia para um canto ou para o outro. Já acho chato marcar diálogo, porque confio que dois atores saibam o que fazer num palco. Marcar monólogo então... Um diretor precisa confiar no ator. Um ator de verdade sabe que é bom, mas fica inseguro. Na hora, no palco, ele sabe, mas depois diz que não sabe. Então quando um ator diz que não sabe, pode ter certeza: se ele for bom, ele sabe".

"Todas as outras artes precisam de mediação: o quadro não é o pintor, o livro não é o autor, mas o personagem é o ator. O ato artístico é carnal, no teatro não tem mediação. É a única arte que torna concreta a poesia".

"Fernanda Montenegro repete mil vezes uma cena procurando uma sutileza, um detalhe do personagem. Marília Pêra estudava muito, aparecia no segundo ensaio com o texto todo decorado. Nanini é desta linhagem de ator, aquele tipo de ator que um acidente em cena não o demove, pelo contrário, ele vai tirar do inesperado uma solução. Isso é o ator de teatro. Um ator de cinema vai dizer que 'se desconcentrou' e pedir para repetir o take, o ator de teatro não tem isso. O ator que tem contato físico com seu espectador não desiste no meio, não se deixa afetar por um acidente em cena, não fica sem saber o que fazer"

"Aprendi teatro fazendo teatro, eu era da Filosofia e das Belas Artes. Aprendi fazendo, num tempo que sirene de polícia a gente fazia na corneta".

"Eu deliro o tempo todo, imagino cenas e dramas, dou entrevistas imaginárias o dia inteiro".

"Decorar é sentir com o corpo. O cérebro faz parte do corpo, e quando você coloca o texto no cérebro, você coloca o texto no corpo. Você o 'incorpora'. Sou marxista materialista, para mim a emoção é uma manifestação corporal, a emoção precisa ser provocada pelo corpo: um esbarrão, uma dança."

*Mariana Filgueiras é autora do recém-lançado "O avesso do bordado: uma biografia de Marco Nanini" (Companhia das Letras)

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Informação é do site The Information"

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