Cultura
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Por Bolívar Torres

Em setembro de 1975, Lygia Fagundes Telles enviou ao escritor Erico Verissimo um cartão-postal com um pedido que faria a outros colegas. “Estou para cobrar-lhe o material para nosso Museu da Literatura Brasileira: fotos (...), textos, manuscritos, caricaturas, cartas que escritores famosos lhe escreveram — enfim, todas as marcas de sua passagem quente”, escreveu ela ao autor de “O tempo e o vento”. E completou: “Agora todos seremos imortais.”

A missiva relembra uma ideia fixa da autora paulista, que durante quatro décadas tentou montar um museu reunindo relíquias dos principais literatos do país. Lygia morreu ano passado, aos 98 anos (ou 103, se levarmos em consideração a data real do seu nascimento), sem ver o projeto se concretizar como instituição. Mas, no ano em que se comemora o centenário (oficial) da autora, o sonho continua mais vivo do que nunca. O Museu da Literatura Brasileira (MLB) saiu do papel — só que em formato virtual. O acervo digital (no site museudaliteratura.com.br) revela ao público as raridades coletadas por Lygia e resgata seu lado pouco conhecido de guardiã da memória cultural.

— Lygia idealizava o museu como um centro de pesquisas, que fosse não apenas representativo da literatura brasileira, mas que se tornasse um espaço de reflexão crítica — diz a pesquisadora Elizama Almeida, assistente do Departamento de Literatura do Instituto Moreira Salles, membro do Conselho Internacional de Museus (Icom) e responsável pela criação do MLB virtual.

Segundo ela, essa seria a principal diferença entre o MLB de Lygia e o Arquivo-Museu de Literatura Brasileira (AMLB), seu quase irmão gêmeo, fundado em 1972 na Casa de Rui Barbosa. Com mais de 20 mil documentos, a instituição foi pensada a partir das conversas entre o bibliófilo Plínio Doyle e o poeta Carlos Drummond de Andrade. Sua concepção inicial, mais voltada para o colecionismo, tem as digitais de Doyle.

Na segunda metade dos anos 1970, Lygia ganhou apoio do Centro Estadual de Cultura de São Paulo, gerando uma leve e cordial rivalidade entre ela e Doyle (e, de certa forma, entre Rio-São Paulo). Três anos depois da fundação do AMLB, a autora deu uma entrevista ao GLOBO afirmando que o MLB seria o primeiro arquivo do gênero. Uma carta presente no arquivo virtual do MBL mostra o “protesto” do bibliófilo. Nela, Doyle lembra a escritora que já existia um museu de literatura no país, o seu. E faz uma exigência: que Lygia não assediasse os acervos dos autores radicados no Rio, deixando a cidade, “pobre de marré“, apenas para ele.

— Doyle era colecionador de manuscritos e o AMLB seguia essa linha, da conservação de autores consagrados, com um léxico voltado para a monumentalização do arquivo — explica Almeida. — Já Lygia prova a literatura do ponto de vista de quem faz, de quem escreve, e essa seria sem dúvida a maior diferença dessas duas instituições.

Sem expor as pessoas

Engavetado por décadas, o museu caiu no esquecimento a ponto de até mesmo os seus amigos mais próximos da Academia Brasileira de Letras, onde Lygia ingressou em 1987, não o conhecerem. Na semana passada, Almeida expôs sua pesquisa na ABL, em uma mesa-redonda com Lucia Riff, agente e velha amiga da escritora, e Ana Maria Machado, sua colega de fardão. Ambas ficaram surpresas com esse lado da imortal.

Compreensível, o projeto já havia ido para o limbo em 1976, com a saída de José Mindlin da Secretaria de Cultura de São Paulo. No ano seguinte, a escritora assume o lugar do companheiro, Paulo Emílio Salles Gomes, à frente da Cinemateca Brasileira. Muito atarefada, acabou doando os 200 itens da coleção ao Instituto de Estudos Brasileiros (IEB). São esses documentos que compõem hoje o MLB virtual. A coleção tem documentos que remontam ao século XIX (fotos de José de Alencar e Escragnolle Doria) até contemporâneos de Lygia, como Ferreira Gullar, Cecília Meireles e Carlos Drummond de Andrade, entre outros (veja destaques abaixo).

Embora Lygia prometesse nas cartas incluir uma “ala erótica” em seu museu, não espere nada picante. Mesmo sendo uma caçadora de relíquias, ela também era capaz de preservar a intimidade de seus colegas.

— Ainda em vida, ela teve a oportunidade de doar suas cartas para o IMS — lembra Lucia Riff. — Na hora de enviar, teve o cuidado de examinar item a item e destruir aquilo que ela achava que expunha aspectos delicados das pessoas com quem se correspondeu.

Autores em destaque no acervo

Erico Verissimo. Autor gaúcho enviou diversos desenhos para Lygia, como a cena abaixo, inspirada no romance “Incidente em Antares” (1971), que representa os mortos-vivos do livro em frente ao cemitério municipal.

Desenho de Erico Verissimo para "Incidente em Antares" — Foto: Divulgação/ Acervo IEB
Desenho de Erico Verissimo para "Incidente em Antares" — Foto: Divulgação/ Acervo IEB

Carlos Drummond de Andrade. Poeta mineiro doou foto rara (acima) do lançamento do livro “Um fazendeiro do ar” (1955). Apesar de ser um dos idealizadores do Arquivo-Museu de Literatura Brasileira, espécie de “rival” do projeto de Lygia, Drummond também contribuiu com relíquias para o acervo coletado pela escritora.

Carlos Drummond de Andrade no lançamento de "Um fazendeiro de ar" — Foto: Divulgação/ Acervo IEB
Carlos Drummond de Andrade no lançamento de "Um fazendeiro de ar" — Foto: Divulgação/ Acervo IEB

Paulo Rónai. Tradutor e crítico foi um dos que melhor compreenderam o conceito de museu de Lygia, doando itens que resumiam sua vida e trajetória. Uma foto de 1970 na Embaixada Francesa no Rio mostra Clarice Lispector, Paulo Rónai e sua família: Nora, Cora e Laura.

Paulo Ronai, atrás de Clarice Lispector (com a bolsa), em 1970 — Foto: Divulgação/IEB
Paulo Ronai, atrás de Clarice Lispector (com a bolsa), em 1970 — Foto: Divulgação/IEB

Ferreira Gullar. Em 28 de novembro de 1975, no exílio em Buenos Aires, o maranhense envia uma carta a Lygia contando que acabara de escrever o “Poema sujo”: “Endoidei de vez”, dizia.

Carta de Ferreira Gullar a Lygia Fagundes Telles (1975) — Foto: Divulgação/ IEB
Carta de Ferreira Gullar a Lygia Fagundes Telles (1975) — Foto: Divulgação/ IEB
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