Cultura
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Por Bolívar Torres

Muita gente já ficou intrigada com a história de algum familiar, ou pensou que a vida dele daria um livro. Uma nova safra de obras leva esta ideia às últimas consequências. Em “Saia da frente do meu sol” (Autêntica), Felipe Charbel investiga o passado de um tio-avô “esquisitão”, que viveu cinco anos de favor no apartamento dos pais do escritor. Em “Exploração” (Todavia), a peruana Gabriela Wiener revisita a trajetória de seu tataravô europeu, um explorador racista que roubou artefatos incas e quase conseguiu localizar a cidade sagrada de Machu Picchu. A matéria-prima de “Triste não é ao certo a palavra” (Companhia das Letras), de Gabriel Abreu, vem de cartas, fotos e anotações da mãe do autor. Ela sofre de demência e perdeu a capacidade de falar e contar sua própria história.

Transitando entre a história social, o ensaio e — nos dois últimos casos — a autoficção, os livros não se limitam a revelar meras intimidades. São verdadeiras biografias cruzadas, que espelham na trajetória de seus antepassados questões contemporâneas como identidade, preconceito, colonialismo e violência patriarcal (caminho explorado em parte por Édouard Louis, vide entrevista na pág. 2).

— É interessante voltar a essas histórias não apenas pelo gosto da lembrança, mas também para entender o que elas dizem sobre as estruturas sociais de cada época — explica Charbel. — No meu caso, esse impulso parte de uma tentativa de entender interdições e preconceitos em torno dessa figura sem voz na minha família, um homem sem renda, relegado a uma posição de agregado.

O projeto de reconstituir a vida do tio Ricardo, um tipo calado e solitário, esbarrava na escassez de fontes. Charbel guardava suas próprias memórias com ele — diálogos curtos trocados na infância, e também uma convivência na vida adulta, quando o biografado se instalou em um quartinho de empregada no apartamento da família. O autor lembrava da sua fragilidade física, o temperamento difícil e o aspecto de abandono.

Borracha ao contrário

Depois, Charbel conseguiu pôr a mão em alguns documentos, que mais pareciam definir Ricardo por tudo aquilo que ele não foi. Como o parágrafo final da sua certidão de óbito, que acabou servindo de epígrafe para o livro: “Não deixou filhos, não deixou bens, não era eleitor e faleceu sem testamento conhecido”.

Professor da UFRJ, o escritor usa seu background acadêmico para transformar a falta de material no próprio assunto de seu projeto. Seguindo a linha de nomes como Pierre Michon e Roland Barthes, “traça a borracha no sentido contrário”, como diz, buscando eloquência nas entrelinhas. Quando imagens de juventude de Ricardo voltam à tona, conhecemos um personagem muito diferente, atlético, boêmio, divertido, posando com amigos na praia. Essas fotos antigas foram possivelmente escondidas por causa de seu teor homoerótico. E isso revela mais do que o material em si.

— A ideia era construir um mosaico a partir de milhões de lacunas e trabalhar na contramão do ocultamento — diz Charbel, que escreveu ouvindo de vez em quando a voz do tio, como se ele conseguisse escutar seus pensamentos. — Diante da alegria dessas fotos, que contrastam com as imagens formais do restante da família, não fiquei especulando se ele esse saía com homens ou com mulheres, mas como ele sentia essas coisas dentro de uma família conservadora.

Diários como espelhos

Diferentemente de Charbel, o escritor e artista plástico Gabriel Abreu, de 30 anos, utiliza o termo autoficção para definir “Triste não é ao certo a palavra”. Sua mãe, Miriam Martello, sofre com uma doença neurodegenerativa — ela não fala e depende de uma equipe de profissionais para tudo. O livro foi a forma que ele encontrou de conhecer a mulher que ela foi ou que poderia ter sido. Para preencher as camadas incompletas de sua vida, o autor revira e-mails, bulas de remédio, mapas astrais, diagnósticos médicos, além de uma caixa de papelão com um diário, centenas de fotografias e 68 cartas de sua mãe. Quando os mistérios persistem, recorre à imaginação.

— Só quando ficamos mais velhos conseguimos ter essa troca de igual para igual com nossos pais — diz Abreu. — É aí que acontece essa reconexão e surge uma possibilidade real de ir em busca da pessoa. Mas, no meu caso, minha mãe adoeceu antes que eu pudesse ter esse tipo de relacionamento. Minha chance de redescobri-la se deu pelo processo de escrita e pela investigação. Mesmo que muita coisa no livro seja ficção, mesmo que venha da minha cabeça, faz parte dela.

A busca do autor, porém, também é pessoal. “Escrevo e envio esta carta para você para tentar reencontrar, em minha própria voz, a tua”, explica. O processo de espelhamento ganha complexidade diante da descoberta de um diário escrito por Miriam em 1993, em primeira pessoa, mas na voz do filho que acabara de nascer. Ela tentava traduzir o que Abreu sentia em seus primeiros momentos de existência.

— Surge esse paralelo, com uma mãe no passado tentando dar voz a um filho, e um filho no presente tentando restituir a voz que a mãe perdeu — conta Abreu. — Foi aí que percebi que todos aqueles documentos eram espelhos do presente. E que essa seria minha forma de dar sentido ao meu luto.

Fantasmas coloniais

Nos três livros, fantasmas do passado reaparecem para iluminar enfrentamentos do presente. No caso de “Exploração”, a figura de Charles Wiener, tataravô da autora, carrega as violências eurocêntricas que, séculos após séculos, ainda fazem parte da vida dos latino-americanos. A protagonista Gabriela Wiener (uma versão ficcional da própria escritora) mora em Madri como imigrante e busca nos paradoxos de suas raízes peruanas as coordenadas para se “descolonizar” e lutar contra o racismo e o machismo.

A escritora Gabriela Wiener na Flip em 2016 — Foto: Alexandre Cassiano/ Agência O GLOBO
A escritora Gabriela Wiener na Flip em 2016 — Foto: Alexandre Cassiano/ Agência O GLOBO

Gabriela visita um museu parisiense e se depara com estátuas de barro de seu país natal. Os artefatos chegaram lá pelas mãos de Charles, que realizou diversas excursões pela América do Sul no século XIX (no Brasil, escavou sambaquis com o aval de Pedro II). O explorador foi um dos grandes nomes da Exposição Universal de Paris, em 1878, uma feira de “progressos tecnológicos” que tinha entre suas atrações um zoológico humano. Ele trouxe do Peru diversas relíquias e uma criança indígena.

Mesmo com esse histórico, a família peruana de Gabriela venera a figura de Charles. Sendo a menina não branca dos Wieners — e, portanto, a menos “respeitável” —, a escritora sempre se sentiu uma anomalia. Ela vê suas origens bastardas como uma ferida comum, partilhada por muitas pessoas no continente.

— A identidade é um quebra-cabeça que se monta e se rearruma ao longo da vida — diz Gabriela. — Como sempre fui a que não me encaixava na minha família, fica aquela desconfiança: e se não viermos de quem devemos vir? E se estivermos engolindo apenas uma versão da história? Onde estava aquele lado em que eu poderia ter me visto representada? O que me revolta é que, do outro lado, tudo é conforto e autoafirmação. Charles tem um livro com diversas ilustrações de raça. Em uma delas, ele marcou: “Duvidoso”. Quando eu a vi, disse “isso sou eu, isso somos nós”. A minha identidade é a dúvida.

Os laços afetivos na equação tornam tudo mais delicado. Suas dúvidas não se restringiam apenas à identidade, mas ao quão longe poderia seguir em sua busca — pessoal, política e literária. Ela conta que temeu magoar os seus familiares ao publicar o livro.

— No fim, a leitura não os machucou, mas mexeu com eles, levou-os a questionar suas origens, seus problemas — diz a autora. — Acho que ninguém tem o direito de impor à sua família processos pessoais. Por outro lado, ninguém obriga você a ler um livro. Temos que ser capazes de reconhecer que nossas histórias familiares têm a ver com o amor e o desejo tanto quanto com o racismo e a colonização. Estão intrincados.

Ciclos de violência

Embora trabalhando em um formato muito diferente, o produtor de conteúdo Caio Cavalcante dos Santos viveu motivações e dilemas semelhantes aos de Wiener, Charbel e Abreu. Desde o ano passado, ele faz o podcast “Raízes”, que entrelaça histórias escondidas de membros da sua família. Convidar um parente para expor sua vida publicamente não é tão simples e envolve questões éticas. Santos toca muitas vezes em assuntos espinhosos, mas buscando ser o menos invasivo possível.

— Tento entrar em um acordo (com os entrevistados) para contar de forma justa as suas histórias, e partindo do princípio de que todo ser humano é complexo — diz Santos. — Tem que tomar cuidado para não espetacularizar a dor dos outros.

Um dos temas sensíveis é a masculinidade tóxica que acompanhou o casamento de seu avô com sua avó — e, por consequência, respingou na relação da sua avó com sua mãe. Trazer essas histórias acaba sendo uma forma de refletir sobre ciclos de violência que atravessam gerações:

— Falo muito no podcast como sinto essa pressão em mim mesmo de não repetir as atitudes dos homens da minha família, e as suas dificuldades de serem pais presentes e bons maridos. É uma oportunidade de quebrar esse ciclo e aprender com os erros do passado.

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