Cultura
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Por O GLOBO — Rio de Janeiro

Morreu, na madrugada desta segunda-feira (17), o pianista, compositor e arranjador João Donato, aos 88 anos. Parceiro musical dos principais expoentes da bossa nova — como Tom Jobim, Vinicius de Moraes e João Gilberto —, o multi-instrumentista se notabilizou pela inventividade com que fundia, a um jeito único, diferentes gêneros musicais, como jazz, samba e ritmos caribenhos. A mistura irreverente dá o caldo (e o tom) de obras que se tornaram marcos da MPB, como "A rã", "Nasci para bailar", "Amazonas", "Simples carinho", "Bananeira", "Emoriô", "A paz", "Lugar comum" e "Até quem sabe".

— Eu não sou bossa nova, eu não sou samba, eu não sou jazz, eu não sou rumba, eu não sou forró. Na verdade eu sou isso tudo ao mesmo tempo — comentou o artista, numa entrevista ao GLOBO.

João Donato morre aos 88 anos

O músico morreu em decorrência de uma série de problemas de saúde. Na última semana, ele havia sido internado, num hospital no Rio de Janeiro, devido a uma infecção nos pulmões. A notícia foi confirmada pela família de Donato.

Do Acre para o mundo

Natural de Rio Branco, capital do Acre, João Donato deu os primeiros passos na música aos 5 anos, quando ganhou um acordeão de presente. Não demorou para que se comportasse como um veterano dos palcos. Aos 8, compôs a primeira música e, aos 12 — depois que a família se mudou para o Rio de Janeiro acompanhando o pai militar —, resolveu viver a primeira aventura musical: inscreveu-se no programa de Ary Barroso na Rádio Cruzeiro do Sul. Mas nada saiu como o esperado.

É que o compositor de "Aquarela do Brasil" não gostava de "meninos prodígio". Dizia que eram "crianças velhas", e ele não aprovava aquilo. Donato havia chegado à atração de calouros com tudo em cima: paletó vincado, gravatinha, sapato de verniz e glostora no cabelo. Tinha um pouco mais de um metro e meio de altura, mas achava que já era gente grande. Não chegou nem mesmo a se apresentar.

O pianista, compositor e arranjador João Donato — Foto: Bruno Kaiuca / Agencia O Globo
O pianista, compositor e arranjador João Donato — Foto: Bruno Kaiuca / Agencia O Globo

— Foi uma decepção, mas aquilo não me desanimou. Logo depois consegui emprego no rádio, tocava sanfona no programa "Manhas da roça", do paraibano Zé do Norte, acompanhava grupos de baião e acabei descobrindo o jazz — conta Donato.

Aos 15 anos, ele se profissionalizou como músico e logo participou da primeira gravação, tocando acordeon nas duas faixas de um 78 RPM do flautista Altamiro Carrilho: "Brejeiro", de Ernesto Nazareth, e "Feliz aniversário", do próprio Altamiro. Pouco depois, migrou para o grupo do violinista Fafá Lemos, como suplente de Chiquinho do Acordeom.

Em 1951, com apenas 17 anos, João Donato namorou a cantora e musa do samba-canção Dolores Duran, que tinha 21. O romance gerou polêmicas e preconceitos a época, por ela ser mais velha que ele. Após um tempo, João resolveu se separar dela por causa das brigas da família do casal. Aos 22, ele gravou "Chá dançante", seu primeiro disco, produzido por Tom Jobim.

Tratado como "mestre mítico" pelos grandes nomes da música popular brasileira, João Donato firmou parcerias famosas ao longo da carreira — ao lado de nomes como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Nara Leão, Jards Macalé (com quem havia acabado de lançar o disco "Síntese do lance", em 2021), Tim Maia, Cazuza, Emílio Santiago, Marisa Monte, Marcelo D2, Angela Rô Rô...

Universo de música

O músico costumava dizer que o mundo era música. Tudo o que atravessava suas orelhas era, a rigor, acordes para os ouvidos. O zumbido de uma abelha era música, o barulho da chuva era música, a buzina de um caminhão era música, a onda no mar era música, o bate bola dos moleques era música, o latido do cachorro era música, a bananeira no vento também era música. Tudo era música para João Donato, vencedor do Prêmio Faz Diferença, do GLOBO, em 2015.

— Eu me lembro da primeira vez que percebi algo como uma música, era o canto de um pássaro, e é um som que, de um jeito ou de outro, está até hoje em tudo o que eu faço — afirmou Donato, numa entrevista que concedeu ao GLOBO há pouco menos de uma década.

O compositor transformou, aliás, o canto do tal pássaro em "Lugar comum", uma de suas músicas de maior sucesso.

— Algumas músicas que ouvia naquela época numa vitrola de dar corda, como “Tristeza de amor”, de Fritz Kreisler, também estão até hoje na minha cabeça. Era como se eu sentisse uma saudade, uma nostalgia de algo que eu ainda nem conhecia. A coisa mais perto do céu que existe é a música — ressaltou.

A aproximação com os bossa-novistas se deu por meio dos fãs-clubes Frank Sinatra-Dick Farney e Lúcio Alves-Dick Haymes. João Donato circulava entre os dois grupos, sem ligar para a rivalidade entre ambos. Desejava fazer contatos. Tocou em boates famosas de Copacabana, como a Drink, a Plaza e a Monte Carlo. Em 1959, o violonista Nanai o convidou para uma turnê nos Estados Unidos, juntando-se ao grupo formado com o que restara do Bando da Lua, que acompanhava Carmen Miranda. Fez temporada de quatro semanas em Lake Tahoe, Nevada, apresentando-se em cassinos.

Em seguida, ficou sozinho em Los Angeles. Sem dinheiro, quase dormiu na rua após ser expulso da pensão onde morava. Nesse período, arranjou uns trocados apresentando-se numa boate com o sugestivo nome de Loosers. Quem lhe salvou da pindaíba foi o baterista cubano Armando Peraza. Ao lado do colega, uniu-se a vários artistas conhecidos da música latina, como Johnny Martinez e Mongo Santamaria. Começou a criar nome assim.

Entre Brasil e EUA

A volta ao Brasil aconteceu em 1962, mesmo ano em que Donato gravou o disco "Muito à vontade". A produção concentrava o cerne de sua identidade múltipla: samba, bossa nova, jazz, balanço latino. Tudo lá. Retornou então aos EUA para levar o vinil para a gravadora Pacific Jazz, e pronto: logo, logo o disco saiu no mercado americano (com o nome de "Sambou, sambou").

O compositor e multi-instrumentista João Donato — Foto: Bruno Kaiuca/Agência O Globo
O compositor e multi-instrumentista João Donato — Foto: Bruno Kaiuca/Agência O Globo

Daí pra frente, a música se tornou superlativa. João Donato rodou o mundo, tocou com nomes como Chet Baker, Sérgio Mendes, Rosinha de Valença e Tito Puente. O som embalado por um suingue cheio de gingado — algo que, por vezes, parecia não caber nas partituras — conquistou o planeta. Em 1970, ele lançou pelo selo americano Blue Thumb o LP "A Bad Donato", com instrumentos elétricos e balanço funk. Ignorado na época, o disco passou a ser cultuado nos anos 2000.

Quando retornou ao Brasil na década de 1970, o artista se tornou próximo de colegas da bossa nova e da Tropicália. Compôs com Gilberto Gil, Roberto Menescal, Caetano Veloso, Marcos Valle, Carlos Lyra, Martinho da Vila, Cazuza...

Entre 1974 e 1976, Donato foi diretor musical de Gal Costa, assinando a direção musical do disco “Cantar” (1974) e do show “Gal Costa & Dorival Caymmi”, além de ter diversas composições gravadas pela cantora, como “Flor de Maracujá” e “Até Quem Sabe”. Ele também produziu Nana Caymmi, dividiu estúdio e palco com Jorge Ben Jor, passou a ser idolatrado no Japão, lançou discos fundamentais como "Quem é quem" (1973) e "Lugar comum" (1975). Foi vizinho de Tim Maia. Jogou nas 11.

'A finalidade do meu trabalho é alegrar os corações'

Há dois anos, também em entrevista ao GLOBO, o músico acriano afirmou que seguia na "busca por alegria", algo que ele classificava como a base de tudo o que executava.

— Uns amigos colombianos dizem que minha música produz serotonina, hormônio que traz sensação de bem-estar. Não sou rico e nem pretendo ficar rico com o que faço. A finalidade do meu trabalho é alegrar os corações, acalmar a raiva dos animais e fazer com que as pessoas pensem melhor — sentenciou ele, que demonstrava surpresa com a redescoberta recente de sua obra pelas novas gerações. — Vejo que tem uma turma mais nova ouvindo o que faço. Minha música tem atravessado os tempos com facilidade porque ela exalta uma lógica natural das coisas. Não são canções fabricadas, sabe?

João Donato tocando piano na Boate People, em 1986. — Foto: Beth Santos / Agência O Globo
João Donato tocando piano na Boate People, em 1986. — Foto: Beth Santos / Agência O Globo

Sintonizado com as vozes da juventude — João Donato produziu obras, recentemente, em parceria com nomes como Céu, Anelis Assumpção, Tulipa Ruiz e Mariana Aydar, além de ter gravado com o filho, Donatinho, em 2017, o LP "Sintetizamor" —, o músico não escondia que tinha, sim, suas restrições. Nem tudo eram flores nos ouvidos do artista.

— Não gosto de funk e sertanejo. São estilos passageiros, e que tem a ver com certo visual vulgar em que todos ficam virados de costas rebolando... Claro que há alguns funks bonitinhos, mas a maioria é xarope e bagunça, algo fácil de fazer — criticou ele, em entrevista ao GLOBO. — O problema é que as pessoas são treinadas para gostar desse tipo de coisa. E acontece mesmo de a gente acabar assobiando certas canções à toa, de tanto que essa música horrorosa inunda os rádios e os ouvidos. O povo se acostumou a um tipo de música como se aquilo fosse certo. Mas música comercial é a prostituição da arte: faz-se só para ganhar dinheiro, como alguém que vende biscoitos Maria.

Em 2022, João Donato lançou "Serotonina", seu primeiro disco de canções inéditas com letras em 20 anos, trazendo parcerias com Anastácia, Céu, Maurício Pereira, Rodrigo Amarante e Ronaldo Evangelista. No próximo dia 16 de setembro, ele iria fazer uma apresentação inédita, ao lado de Martinho da Vila, no Coala Festival, em São Paulo.

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