Cultura
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Por Ruan de Sousa Gabriel — São Paulo

Não começou ontem, mas parece que cresce a cada dia. Uma contagiosa enfermidade social vem se espalhando pela internet: a hipocondria moral. O diagnóstico é de especialistas no assunto. O principal sintoma é a emissão de opiniões indignadas (e às vezes ataques) que visam a atestar a correção moral e a adesão a ideias progressistas daquele que fala. Pense nas hashtags do tipo #SomosTodosFulano que se multiplicam em perfis sempre que um apresentador de TV ou jogador de futebol é alvo de insultos racistas. Ou na ênfase com que pessoas heterossexuais defendem que todas as formas de amor são válidas quando explodem casos de homofobia. A indignação, muitas vezes, é justa e necessária, claro. No entanto, essa falação é inversamente proporcional à energia dispendida na elaboração de estratégias de luta política para vencer, no mundo real, os problemas que frequentemente causam a indignação inicial.

A hipocondria moral pode ter semelhanças com outros fenômenos da cultura digital, como “sinalização da virtude” (tentativa dissimulada de exibir as próprias qualidades morais) e o cancelamento (condenação sumária de personalidades por causa de um único comentário infeliz, desqualificação da fala do outro aludindo aos privilégios de que ele desfruta etc.).

Em ensaio publicado na última edição da revista serrote, do Instituto Moreira Salles (IMS), a mexicana Natalia Carrillo e o espanhol Pau Luque, ambos pesquisadores em Filosofia, descrevem a hipocondria moral como uma “peculiar combinação de decência e narcisismo” que caracteriza o comportamento político de classes médias progressistas. Os autores afirmam que se trata de um comportamento tão pequeno-burguês como tomar remédios ansiolíticos ou ligar para a polícia para reclamar do barulho na vizinhança.

— A hipocondria moral é a apropriação de causas nobres unicamente para cultivar sua boa reputação — afirma Luque, da Universidade Nacional Autônoma do México. — Acusar os privilégios do outro é uma tentativa de calá-lo e dá início a uma dinâmica autodestrutiva, pois todos temos algum privilégio em relação aos demais, de modo que no fim todos seremos silenciados. É a paralisia da política.

‘Empatia’ como distração

Também é recorrente que hipocondríacos morais evoquem a empatia para apaziguar conflitos sociais. No entanto, explicam Carrillo e Luque, a empatia é uma qualidade pessoal, e não “institucional, política ou coletiva”. A militância pela empatia acaba resultando na “sentimentalização” da vida social: a “fofura” irrompe no debate público e “desloca o político para um lugar secundário, quando não irrelevante”.

— A escritora zambiano-americana Namwali Serpell escreveu certa vez que os brancos acusam os outros de falta de empatia para novamente se sentirem como salvadores, repetindo um padrão histórico que mescla propaganda moralista, pornografia sentimental e paternalismo — diz Luque. — A ideia de empatia, conforme é usada hoje no debate público, não passa de uma distração.

Quem primeiro diagnosticou a hipocondria moral foi o psicanalista alemão Erich Fromm (1900-1980). Em “O coração do homem”, obra de 1964, ele descreveu quem sofre dessa doença como um narcisista que sente culpa o tempo todo. Embora, à primeira vista, o hipocondríaco pareça “alguém particularmente consciencioso, moral e até interessado pelos outros, o fato que esse é indivíduo só está interessado em si mesmo, em sua própria consciência, no que os outros podem dizer sobre ele”, escreveu Fromm.

Tanta culpa vem da consciência que o indivíduo tem de seus privilégios herdados e de como se beneficia dos sistemas de opressão que tanto denuncia (ainda que não bote a mão na massa para de fato destruí-los).

Embora tenha nascido ainda em tempos analógicos, a hipocondria moral se tornou epidêmica com a emergência das redes sociais. Propagou-se sobretudo no “Twitter de esquerda”, que o crítico cultural britânico Mark Fisher (1968-2017) descreveu como um “ninho de beatos traficantes de culpa”.

Existe uma solução

Nos tempos pré-internet, os hipocondríacos morais expiavam a culpa por meio da ação política irrefletida. Carrillo e Luque dão dois exemplos: o real da ativista nova-iorquinha Kathy Boudin e o ficcional de Merry Levov, personagem do romance “Pastoral americana”, de Philip Roth. Filhas das classes privilegiadas, ambas tentam aplacar sua culpa política participando de ações armadas de grupos revolucionários, que não só fracassam como acabam prejudicando o avanço das causas que defendiam, e/ou vitimando inocentes.

Michel Laub, escritor que antecipou os efeitos da cultura do cancelamento no romance “O tribunal da quarta-feira” , de 2016, suspeita que os hipocondríacos morais da era digital sejam ainda mais narcisistas do que seus antepassados analógicos.

— Existe uma diferença entre quem só dá dois cliques para acusar todo mundo e quem coloca o seu na reta e enfrenta consequências maléficas, como se estivesse de fato se punindo por ser culpado. Os narcisistas das redes sociais querem tanto a validação do coletivo que acabam sendo mais realistas que o rei e tomam o lugar do acusador — diz Laub. — Esse fenômeno não é só da cultura, mas também é influenciado pela arquitetura das redes.

Uso de causas e sadismo

Autor de “O diálogo possível”, Francisco Bosco acredita que a hipocondria social tenha se espalhado pelas mídias digitais devido ao “ambiente extremamente narcisista desse novo espaço público”.

— Nas redes sociais, um militante pode chamar mais atenção para si próprio que para a causa. Isso deforma o comportamento dos sujeitos, que passam a se orientar mais pela compreensão dos códigos que favorecem sua própria promoção que pela tentativa de compreensão da causa — explica o filósofo e integrante do programa “Papo de segunda”, do GNT. — Com frequência, prevalece não a justa compreensão da causa, mas o discurso que garantirá mais prestígio entre os pares. Vemos isso o tempo todo.

Bosco afirma que o espaço público digital permitiu às classes médias progressistas expiarem sua culpa por meio de “uma dinâmica que mistura desresponsabilização e sadismo”: “por um lado, radicalizam seu discurso, sem que isso se traduza em atitudes práticas; por outro, acusam-se uns aos outros na tentativa de criar bodes expiatórios”. Não é de estranhar, portanto, que a cura da hipocondria moral envolva a recusa da falação das redes sociais.

— Com menos frases de efeito, menos insultos, menos indignação e mais esforços para criação de espaços políticos que ensejem mudanças culturais e estruturais — diz Carrillo, pesquisadora em Filosofia do Direito na Universidade de Viena.

Carrillo e Luque insistem que, para superação da hipocondria moral, precisamos aprender a agir movidos pela responsabilidade e não pela culpa. Mas o que isso significa na prática? Organizar-se politicamente para lutar por mudanças efetivas, eles dizem. E, no caso das redes sociais, calar a boca.

— A noção de que se pode ser ativista nas redes sociais é complicada. Como ser ativista num lugar onde toda atividade é volátil, efêmera e superficial? A longo prazo, todas as vitórias nas redes sociais são irrelevantes — afirma Carrillo. — A energia que desperdiçamos em discussões improdutivas na internet seria mais bem investida na política.

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