Cultura
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Em uma passagem de seu mais novo livro, “Um rio um pássaro” (Dantes), que será lançado em 27 d e outubro, Ailton Krenak questiona a ideia de que “existimos para criar algo”. Na filosofia ocidental, escreve ele, é “honroso fazer barulho escandaloso na morte”, deixando monumentos para eternizar os que se foram. Apoiando-se no pensamento ameríndio, o ambientalista e filósofo oferece um contraponto: ser como um pássaro, que pousa em silêncio e volta aos céus sem deixar rastros.

Talvez contradizendo a própria imagem acima, Krenak foi eleito, na tarde desta quinta-feira (5), para a Academia Brasileira de Letras, uma instituição que abriga estátuas e “imortais”. Uma das funções da casa, inclusive, é a de preservar o legado de figuras notáveis da nossa cultura. Krenak está agora entre elas: ele ocupará a cadeira 5 da ABL, vaga desde a morte de José Murilo de Carvalho, em agosto. Mais do que isso: é o primeiro indígena a figurar no quadro de acadêmicos, mostrando que a academia vem se abrindo aos pedidos por diversidade nos últimos anos.

— Quando falo em pisar em um mundo sem deixar tótens é uma crítica a uma colonialidade instituída por um mundo de representação das coisas, em que o que aparece é o que importa — diz Krenak. — É assim que se discrimina os povos indígenas. Mas quando a Academia acolhe um sujeito vindo dessa constelação de povos, ela está admitindo um debate sobre essas super estruturas coloniais que estão aí. Claro que estou totalmente eufórico com a eleição. Quem diz que é indiferente a isso é um Bob Dylan. Eu não tenho a verve dele, sou mais tropicalista.

Favorito desde o início, Krenak recebeu 23 votos, superando a historiadora Mary Del Priore (12 votos) e outro representante indígena, o escritor Daniel Munduruku (4 votos). Durante a campanha, que incluiu telefonemas e envio de livros aos votantes, ficou a maior parte do tempo na Reserva Indígena Krenak, no município de Resplendor, no estado de Minas Gerais.

Trajetória

Krenak é Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal de Juiz de Fora e ocupa a cadeira 24 da Academia Mineira de Letras. Nascido no vale do rio Doce, uma região afetada pela atividade de extração mineira, mudou-se para o Paraná aos 17 anos, onde se alfabetizou. Ele participou da fundação da União Nacional dos Indígenas (UNI), o primeiro movimento indígena de expressão nacional. Sua eleição para a ABL acontece no aniversário de 35 anos da promulgação da Constituição, na qual atuou para a aprovação da emenda constitucional que trata dos direitos dos povos originários. Em 1987, ele comoveu o país com um discurso na Assembleia Nacional Constituinte, em que pintou o rosto com a tinta preta de jenipapo em protesto ao retrocesso dos direitos indígenas.

— A ABL tem a maior representatividade possível da cultura brasileira — destacou Merval Pereira, atual presidente da instituição. — O Krenak é um poeta, tem uma visão de mundo muito apropriada para esse momento em que o planeta está preocupado com o meio ambiente e os povos originários lutam por seus direitos. Tudo isso está embutido na vitória de Ailton Krenak.

O sucesso de seus livros mais recentes, como "A vida não é útil" e “Ideias para adiar o fim do mundo”, ambos publicados pela Companhia das Letras, difundiu o pensamento ameríndio para o grande público, propondo novos modos de vida e maneiras de se relacionar com o meio ambiente. Krenak critica o que ele chama de "humanidade zumbi", uma ideia de progresso que deslocou os homens do corpo da terra e nos levou o consumo desenfreado e à destruição da natureza.

— Quando eu falava há uns 10 anos, com exceção dos antropólogos, ninguém entendia o que eu estava falando — diz Krenak. — Achavam que eu via filme de ficção-científica demais. Mas as mudanças climáticas estão aí, elas vão matar todo mundo, inclusive os imortais.

A urgência climática mudou este cenário, dando mais atenção a vozes como a do líder indígena. Krenak, porém, evita personalizações em suas entrevistas e aparições públicas. Seu desejo, diz, não é promover suas ideias, mas um "pensamento coletivo". Não tem sido diferente em meio a chuva de homenagens aos 70 anos do pensador indígena, completados no último 29 de setembro.

— Represento os povos originários, um povo da palavra, não do grito — diz ele. — Um sujeito coletivo não coleciona medalhas.

'Culto a personalidade cria monstros'

Krenak vê perigo no culto à personalidade, um vício que acaba criando "monstros e fantasmas dos quais não conseguimos mais nos livrar". Muitos admiradores das ideias de Mahatma Gandhi ou Nelson Mandela, pontua ele, "não aguentariam uma semana com nenhum dos dois". E aqueles que admiram as ideias de Krenak, quanto tempo aguentariam?

— Uma semana eu acho que daria — responde Krenak. — Eu conseguiria despistar alguns defeitos, que depois iriam aparecer com marcas muito fortes. E aí algumas pessoas iriam preferir me visitar de vez em quando. Ou só me ler.

"Um rio um pássaro" traz reflexões de Krenak anotadas por Hiromi Nagakura, um fotógrafo japonês que o acompanhou por terras indígenas nos anos 1990. O ambientalista fala sobre suas origens e sua jornada no tempo e no mundo durante conversas em viagens de canoas, finais de tarde nas redes e caminhadas na floresta. O texto da edição brasileira foi extraído de uma obra lançada no Japão em 1998, com fotos e um diário de viagem de Nagakura.

Na visão de Krenak, a ânsia em dominar o outro colocou o homem "fora do universo". A perda de um contato sensível com o "ritmo cósmico" também é a perda da nossa memória ancestral, da memória contida nas árvores e nos rios. Ele empresta uma expressão do escritor piauiense Nêgo Bispo para definir a armadilha que o homem se meteu: cosmofobia.

— As pessoas têm medo do cosmos, evitam uma cosmovisão. Aí o ser humano apaga tudo que não é ele — diz Krenak. — Somos como um boomerang cego que se manda para longe. Quando ele volta, continua oco.

O "sonho" é outro tópico-chave do livro. Não o sonho trabalhado pelos "queridos psicanalistas", como Krenak explica. Mas o sonho como linguagem e treinamento espiritual — uma arte dominada por poucos.

Foram as mensagens do sonho de um ancião sonhador do povo Xavante, nos anos 1970, que estimulou Krenak a se reconectar com sua herança cultural e iniciar suas ações pela sobrevivência da floresta. Também inspirou a criação, em 1989, do Centro de Pesquisa Indígenas, que mudou as atividades de Krenak. Contudo, os sonhos atuais do líder indígena pode levá-lo a novos caminhos.

— Os sonhos estão me levando para um lugar cada vez mais longe dessa terra — revela Krenak. — Sem me dar nenhuma tarefa ordinária, tipo organizar uma associação ou um movimento, coisas que me envolveram por 50 anos da minha vida. Eu também não quero ficar apresentando folha de serviço. Aliás serviço. é a coisa que menos me interessa.

Krenak conclui:

— Somos efêmeros. Pisar suavemente na terra deveria ser uma guia geral.

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