Cultura
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Por — Rio de Janeiro

A cicatriz vertical que rasga o peito de Rubel de alto a baixo não o incomoda. Pelo contrário. Faz o cantor e compositor de 32 anos lembrar da sorte que é estar vivo. Quatro meses atrás, ele precisou passar por uma cirurgia de emergência no coração para reparar o prolapso da válvula mitral.

O problema foi descoberto por acaso. Havia baixado no hospital com desarranjo intestinal quando, após um exame básico, a médica anunciou: “Você tem um sopro no coração”. O diagnóstico foi confirmado pela cardiologista com a gravidade de quem constatara ainda que o órgão já estava bastante comprometido. Ela, então, pôs as cartas na mesa: operar imediatamente ou esperar e bancar o risco de ter um pirepaque a qualquer momento?

É que havia uma turnê no meio do caminho. Uma turnê muito esperada. Era a volta de Rubel aos palcos, com o show do disco “As palavras Vol. 1 & 2”(lançado em março e indicado ao Grammy Latino de Melhor Álbum de Pop Contemporâneo em Língua Portuguesa), após três anos de jejum por causa da pandemia.

— Minha primeira reação foi: “Não vou parar nem a pau. Vou viver e ver o que acontece”— lembra ele que faz, dia 20, aquele que é considerado o maior show de sua carreira fora de festivais, no Espaço das Américas, em São Paulo. — Depois, ficou evidente que eu precisava rever as prioridades. Nesse momento, a gente organiza a cabeça. Adiamos os shows e, em três semanas, eu estava na maca, abrindo o peito.

Foi tudo tão rápido que pegou amigos de surpresa. Como Adriana Calcanhotto, com quem ele compôs “Você me pergunta”, com direito a um clipe em que os dois se beijam muito.

— Rubel andava sumido das nossas conversas de texto, depois apareceu contando da cirurgia. Levei um susto, mas ele foi certeiro: “Já operei, já deu certo, já tô vivo” — conta ela, destacando “o humor, a inteligência musical e as canções originais” do parceiro.

Antes de entrar na faca, ele precisou avisar ao público de 2,5 milhões de ouvintes mensais no Spotify e 364 mil seguidores no Instagram. Gente que aguardava ansiosamente seu retorno à cena desde 2020, após o antológico show com Gal Costa, na Fundição Progresso, que encerrou a turnê do álbum anterior, “Casas”.

O tom do vídeo em que dava a notícia era tristíssimo. Acompanhava seu estado de espírito. “Você não pode postar isso. Vão achar que está morrendo”, atestou o irmão, o jornalista Fábio Brisolla. Uma versão mais otimista foi postada, classificando a cirurgia como de “baixíssimo risco”.

— Eu poderia ter feito um circo, chorar diante da câmera. Muita gente ganha mídia em cima disso. Só que não é esse tipo de atenção que eu quero. Quero atenção para os meus discos e shows, para o meu trabalho. Então, o vídeo foi algo tipo "deixa eu viver esse momento difícil com a minha família". Não queria criar alarde, muito menos preocupar as pessoas.

Mas ele sabia que, de simples, o caso não tinha nada. No fundo, estava completamente apavorado. Adotou, no entanto, uma postura corajosa para tranquilizar a família, a namorada e os fãs. Minimizou tanto a situação que acabou acreditando na própria farsa. "Vou ali consertar uma válvula e está tudo certo", repetia para si mesmo. Só que na hora em que se viu deitado sobre a cama do hospital....

— Ali, eu pensei: “Posso, sim, morrer fazendo essa cirurgia”.

O pós-operatório confirmou a complexidade da situação.

— Ficava no CTI dopado. A dor de fissurar ossos é insuportável. Tinha um dreno no coração. É o que chamam de "ordenha". Quando puxam, dá para sentir o sangue atravessando seus órgãos. Tinha pressão baixa ao levantar, quase desmaiava. Reaprender a andar é difícil, assim como ficar emocionalmente fragilizado, maluco sob o efeito dos remédios. Foi muito mais punk do que imaginava.

Estar diante da possibilidade do fim mexeu profundamente com ele. Mais: o transformou.

— Não tem como não pensar no que eu queria fazer com os últimos possíveis dias da minha vida. Muda tudo. Não tem como ser o mesmo depois de uma cirurgia no coração. Sou outra pessoa. E é muito gostoso estar vivo.

A maior mudança foi diminuir a importância do trabalho e passar mais tempo com as pessoas que ama.

— É clichê, mas é total isso. Até a forma de lidar com trabalho fica mais saudável. Não estou no palco para ganhar dinheiro ou garantir que minha carreira dê certo. Mas porque minha mãe está me vendo (chora). A vida fica mais saborosa porque você nutre o trabalho com afeto e amor da vida real.

Esse pensamento o ancorou em outros mares:

— O mundo de fama, mídia, seguidor, é fantasioso, vazio. Você se alimenta de coisas fantasmas, que podem não estar daqui um ano. Sua base vai ficando carcomida. Quando entendi que queria fazer minha carreira dar certo, o resto era "quando sobrar um tempo, vejo os amigos e a família". Mas, nessas horas, você entende que é justamente o contrário — afirma. — Vejo amigos da música com o mesmo problema, se desconectando das pessoas, não conseguindo namorar porque esse trabalho engole. Mas o Grammy não vai te fazer uma conchinha na hora de dormir, não vai transar ou sair para beber uma cerveja com você. São constatações óbvias, mas que a gente tem que sentir na pele mesmo para entender.

Outro impacto direto foi na inspiração. Tanto que é a emoção que conduzirá as canções do quarto álbum de Rubel, para o qual ele já está compondo. Vai gravar em 2024.

— Vai ser um disco de músicas do coração. Um caminho oposto de tudo que racionalizei, estudei, pesquisei. Se vai ser funk, pagode, melodia complexa ou se vem da tradição não importa. Agora, quero fazer a música que meu coração quiser cantar. Vim de um disco cabeçudo. Vamos ver o que minha alma quer dizer.

A performance em cena ganhou mais fôlego após um período em que se questionou sobre voltar ou não aos palcos:

— Entre 2018 e 2019, fiz 20 shows por mês num período difícil da vida. Meu pai faleceu, tinha terminado um namoro e não estava cuidando da saúde. A turnê estava exaustiva e fui criando um pavor do palco. Foi um processo traumático. Cheguei a pensar em virar músico de estúdio, que só compõe e grava — lembra. — O fato de ser protagonista, de ter milhares de pessoas te olhando, depositando expectativas, pagando para te ver... Esse peso de ter que entreter, conduzir emocionalmente essas pessoas. Tem uma parada energética de quem está cantando que é ser um fio condutor de tudo que está ali. Se você desestabiliza, o músico e a plateia também desestabilizam. Tem que ter uma força interior e, se você não está bem de saúde, é muito difícil. Tudo isso estava pesado para mim. Saber o que falar, como me movimentar...

Terapia, academia e macumba (ele se iniciou na umbanda) foi o combo que fez o filho de ogum e iemanjá recuperar a segurança.

— O que mais ouvi da minha mãe de santo foi: “Para de ter medo do palco, você pertence, sim, a esse lugar”. Foi um processo de preparação espiritual e física em que o dramaturgo Vinicius Calderoni e o diretor musical Fejuca, que trabalha com Liniker e Emicida, também me ajudaram muito. Principalmente, a entender o que é estar no palco. Às vezes, não é só sobre música — analisa Rubel que, em setembro, fez parte do show de “As palavras”, no Circo Voador, de olhos fechados. — Quando abri, consegui encarar as pessoas. Essa turnê está ressignificando minha relação com o palco, me fazendo assumir que preciso desse espaço para levar minha música adiante. E, agora, depois da cirurgia, a primeira coisa que penso é que poderia não estar ali. Como vou reclamar de Deus? Como ter medo depois de ter vivido isso? Tenho mais é que subir e engolir tudo. Estou curando feridas.

'Senti desconexão entre o que estava cantando e o que era o Brasil’

Rubel: 'Fui criando um pavor do palco. Cheguei a pensar em virar músico de estúdio, que só compõe e grava' — Foto: Leo Aversa
Rubel: 'Fui criando um pavor do palco. Cheguei a pensar em virar músico de estúdio, que só compõe e grava' — Foto: Leo Aversa

Se Rubel antes cantava mais sobre o próprio umbigo e intimidade, entoando frases inocentes e fofas como "quero partilhar a vida boa com você", o disco “As palavras” marca uma mudança radical na temática do compositor. Neste álbum, ele expande os horizontes para falar do Brasil e da diversidade de ritmos do país. Para isso, contou com participações de Gabriel do Borel, Liniker, Xande de Pilares, Milton Nascimento e outros.

— Rubel é um dos artistas que mais gosto da nova geração da música brasileira. Fizemos uma canção sobre amizade (“Lua de garrafa”) e, óbvio, nos tornamos ótimos amigos — conta Milton.

A guinada rumo a um caminho mais brasileiro e popular teve razão de ser.

— Era 2019, e estávamos estava iniciando um momento sério, assustador e violento da história brasileira. E minhas músicas eram doces, falavam de um universo poético que parecia uma ilha. Senti uma desconexão entre o que eu estava cantando e o que era o Brasil. Isso me gerou desconforto. Eu pensava: daqui 30 anos, quando a gente olhar a História do país, para esse período assustador, vou pensar no que estava acontecendo na arte e no que eu estava cantando e pensando. Tive o privilégio de cantar com Gal, Adriana Calcanhotto, Emicida... Isso vem acompanhado de responsabilidade. Precisava ser mais do que estava sendo — analisa ele, que é formado em cinema e colocou um telão no palco de seu atual show, com concepção cenográfica de Batman Zavareze, com trechos de filmes que dialogam com sua obra ("Marte um" e "Antes do pôr-do-sol" são alguns).

Ele define como um "choque de realidade" o momento em que percebeu necessidade de mergulhar num estudo mais aprofundado sobre o contexto social e político tanto do momento como da própria história da formação da identidade e da cultura brasileira.

Diante da constatação, encheu uma mala de roupas e outra de livros e partiu sozinho para uma espécie de retiro em Mucugê, no interior da Bahia. Lá, ainda curando o luto pela morte do pai e o fim de um namoro, quis aprender a cozinhar e resgatou o amor pela literatura, deixado de lado em meio à correria das turnês.

Mas, sobretudo, iniciou uma pesquisa no cancioneiro e na literatura brasileira (“Viva o povo brasileiro”, de João Ubaldo Ribeiro, foi uma obra marcante). Ao todo, foram três anos de estudo que resultaram na fusão de pagode, MPB, música eletrônica, forró e funk que compõe “As palavras”.

— Fui lá no Dorival Caymmy, Luiz Gonzaga... Fui entendendo a genealogia dali para a bossa nova, para a tropicália e as ramificações disso. Especialmente para o que existe hoje, no trap, funk, pagode, de onde o samba veio e para onde está indo. Entendi que muito da ideia de Brasil foi criada a partir de criadores de cultura, pensadores da identidade brasileira. Caetano, Gal, João Gilberto, Chico Buarque, Bethânia...— enumera. — A gente sabe o que é ser brasileiro um pouco por causa da nossa música. Essa é a essência do disco. Acho que foi a fundação de um movimento dentro da minha vida que vai ser um fio condutor até eu morrer, uma vez que alinhei esse pensamento maior em relação a como a música pode afetar e transformar o contexto social em volta, o lugar que a gente vive e a forma como a gente se relaciona com os outros, com o Brasil e com o mundo.

Segundo Rubel, o álbum serve como um "pezinho na água, uma carta de intenção" no sentido dessa vontade de dialogar com seu país.

— Quero compor canções que possam fazer parte do nosso cancioneiro e, de alguma forma, ajudar a mexer em algo.

O funk “Putaria” mexeu. Com a mãe de Rubel. Uma das maiores incentivadoras da carreira do filho, Chloris Eleusis ficou apreensiva com a mudança de rumo. Quando o clipe da música, em que beija outro homem, foi lançado, então...

— Foi um choque, ela ouviu muita besteira. Mas minha mãe é muito parceira, e os shows foram importantes para ela ver as pessoas felizes, entender que minha carreira não acabou e que o funk deu certo — diz ele, que teve a ideia de compor o batidão inspirado pelo trabalho de Kevin O Chris. — Fiquei maluco com ele. E pensei que, quando acabasse a pandemia, o funk seria o ritmo perfeito para captar o liberdade que tomaria conta das pessoas quando o isolamento terminasse. Imaginava todo mundo saindo, dançando, se esfregando, sarrando. O que, de fato, aconteceu.

Ele detalha os motivos que o fizeram optar pela narrativa do clipe:

— Namorei mulheres a vida toda, me considero heterossexual, mas tenho essa abertura. Já beijei amigos e tá tudo bem. Durante muito tempo, essa foi uma questão para mim. Hoje, não é mais. Quero poder experimentar, e isso não vai me definir em nada. O clipe era importante para eu poder dizer isso na prática. Que, se um dia eu quiser namorar um cara, eu vou.

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