Tinha eu 14 anos de idade / quando chamei minha mãe / perguntei se ela queria / me levar pra ver Legião / lá no Circo Voador. Paulinho da Viola que perdoe a infame paródia, mas foi assim que pus os pés na profissão (perdoa, também, Milton!). Ali começou meu caminho de espectador (e futuro repórter/crítico/cronista) de música popular, aquele que me levaria em 1992 a um Canecão sob gás lacrimogênio e pancadaria grossa com os punks americanos dos Ramones. Ou então a horas de viagem e privação de sono para ver algum artista querido em outra cidade, estado ou mesmo outro país. Esta sexta-feira, foi a vez de Taylor Swift no Engenhão.
De novo, ali, os 14 anos. Não os meus, mas os de minha sobrinha, a Bia. Todo adulto sabe como pode ser difícil a comunicação com os de 14, aquela idade complicada, de portas fechadas, cochichos e referências indecifráveis. Por sorte, temos Taylor, a porta para o nosso espaço comum: a música pop. Aquela mesma entidade que, de Elvis, Beatles e Bowie a Michael, Madonna e Britney, nunca nos deixou sem assunto.
E rende muito assunto essa americana de 33 anos, cujo nome os pais supostamente escolheram para homenagear um mestre da canção (James Taylor), e que está aí há pelo menos duas décadas no ofício. Nas ruas, no metrô, no trem da sexta absurdamente quente do Rio, as swifties (e alguns poucos meninos e pais de swifties) dominavam a paisagem, preparando-se para o grande momento do primeiro show da turnê brasileira da dona do mais apaixonado fã-clube global da atualidade.
Taylor Swift faz primeira noite de shows no Brasil, em apresentação de "The Eras Tour", no Rio
Quem chegou à tarde no Engenhão presenciou o que deve ter sido a maior fila já organizada no mundo, com uma multidão que vestia as músicas e slogans da ídola em camisetas - A lot going on at the moment, Miss Americana, Who's Taylor Swift anyway? e Karma, principalmente. A expectativa beneficiou a estrela do show de abertura: Sabrina Carpenter, uma bonequinha sapeca que foi recebida na sauna do estádio como se Taylor fosse. Sob gritaria, ela apresentou seu pop-dance de qualidade e algumas canções românticas - entre eles, uma releitura da velha (mas imortal) "Dancing queen", do Abba.
The Eras Tour, anunciava o telão, antes da contagem regressiva. Ou seja: nas quase três horas e meia seguintes às 19h30, Taylor Swift passaria a limpo todas as fases da sua carreira, 17 anos de música. Para muita gente, só pareceu que aquilo era de verdade depois que a deusa disse olá ao fim de "Miss Americana & the Heartbreak Prince", a primeira do show e da era do álbum "Lover".
Depois de "Cruel summer" (que título ironicamente apropriado para o dia escaldante!), Taylor parou só para ouvir os gritos da plateia. E celebrar o fato de ter se tornado a primeira estrela internacional mulher a se apresentar no Engenhâo - isso, para meter em seguida a provocativa "The Man", sua estocada no mundo masculino.
A memória dos entreveros amorosos no colegial de "You belong With me" e "Love story" arejaram o ambiente para a chegada do folk de refrão poderoso "tis the damn season" e o inverno barroco de "willow". Suadas, as swifties se imaginam na bruma. O tom de confidência da cantora em "Marjorie', o publico que explode num "Taylor, eu te amo" quando ela iniciava o piano-e-voz "champagne problems"... a noite era de um toma-lá-dá-cá dos mais admiráveis. O pop em sua máximo poder.
O cardápio variado do show permitiu que Taylor evocasse a Britney Spears má em "...Ready for It?", roçasse o rap em "Look what you made me do", executasse a dança das princesas de "Enchanted" e fizesse desfilar o power pop de "Long live" - tudo o que é permitido a uma cantora branca, americana, fazer impunemente no exercício do superestrelato.
Passadas as 21h, ainda tinha muito show pela frente. Toda a era de entusiasmo com a descoberta do pop do disco "Red", por exemplo - e no improvável caso de Taylor esquecer uma letra, um contingente de jovens mulheres e meninas estaria lá para lembrá-la. De qualquer letra. Uma certa nostalgia da velha América percorreu a era do disco "folclore" (com direito a uma casa de madeira no palco). E o pop oitentista (com destaque óbvio para o hit "Shake It off") comeu solto na etapa do disco "1989".
Na tradicional seção acústica de músicas surpresa, Taylor sacou ao violão uma do seu primeiro álbum, da adolescência, "Stay beautiful". E, ao piano, deleitou swifties com "Suburban legends". Foi a deixa para a última era do show, a do disco "Midnights", o seu mais recente, do ano passado. Uma coleção de faixas dominada pelo synthpop sombrio e sensual, mais a ver com a Taylor Swift de 33 anos e com a musica pop de 2023 - incluindo pelo menos uma grande canção, "Anti‐Hero". Um "eu te amo, Rio" indicava que a coisa ia chegar ao fim - e de fato chegou, sem choro nem bis (mas com chuva de papel) após "Karma". Mas sábado e domingo tem tudo de novo com a inesgotável Taylor.
E o que fica da experiência, dessa tour de force compartilhada com a sobrinha e uma Legião Swift? Uma certeza, ao menos: a de que pode ter pulseiras luminosas, balé, recursos cênicos, vestidos, violões extravagantes, fogos... mas nada é maior do que o carisma e a comunicação que Taylor estabelece com seu público. É algo capaz de dar às suas canções pop, por mais formulaicas que sejam, um valor extra, inexplicável. Algo do qual as meninas de 14 anos, como a Bia, vão levar para a vida - e ai de quem diga que houve um negócio mais marcante do que aquele tempo pós-pandemia, em que voltamos com sede aos shows e os sonhos se realizaram.