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Escrever sobre sexo no século XVII não era fácil. Registros desta natureza, considerados atos pecaminosos, acabavam se fazendo presentes apenas em romances proibidos, processos e inquéritos do Santo Ofício. A criatividade dos clérigos do período era erudita, quase como se os religiosos quisessem ritmar o ato da cópula em uma cadência poética, digna de entrar para os anais do léxico da língua portuguesa.

Essa última flor do lácio, tão inculta e bela, que hoje desabrocha à vulgaridade das redes sociais, fazia-se indispensável para condenar ou absolver criminosos da natureza sexual, como o violeiro português Luiz Delgado, protagonista de alguns dos maiores escândalos do Brasil Colônia.

Delgado, uma personagem real, torna-se protagonista de “Sodomita”, novo romance do escritor e diplomata Alexandre Vidal Porto. Na trama, Vidal Porto se inspira nos autos dos processos que o violeiro de Évora, Portugal, respondeu no reino pelos crimes de “pecar no nefando e na mais torpe das ofensas”, como é descrito por meio de uma linguagem do século XVII elaborada a partir de uma visão do século XXI.

A metamorfose do léxico antigo, acomodada na fluidez de uma escrita contemporânea, é o trunfo da narrativa — por conta da busca pela exatidão das palavras, característica da prosa de Vidal Porto. A ironia, por meio do vocabulário rebuscado em situações, digamos, pagãs, torna a história ainda mais fluida, pois quando alguém “padecia de um calor diabólico” ou estava prestes a mergulhar na “pocilga da perdição”, cenas vívidas e friccionais (nessa libido literária que mistura fricção e ficção) respaldam o ato sexual como algo intrigante, ao contrário do que se lê e se vê em açucarados best-sellers.

Ainda que temas áridos surjam ao longo do romance — é inevitável —, como nas convenções ultrapassadas do Tribunal do Santo Ofício, que a duras penas destinou homens e mulheres à fogueira, soa engraçado como Vidal Porto destaca frases contendo um pânico moral crônico encampado pelos cardeais da época. Essa realidade, no entanto, pode encontrar ecos, infelizmente, em determinados comportamentos extremistas nos dias de hoje.

Delgado encontra em seu caminho, na Bahia de Todos os Santos da época, “feitiçaria, protestantismo, bigamia, opiniões heréticas, erros luteranos”, e sucumbe à sodomia, aceitando, segundo o narrador, “a morada de sua alma a tudo o mais de aberrante. Somitigarias, maus pecados, velhacarias, fanchonices, ósculos, amplexos, molícies de toda sorte, fornicações perversas, mamadas, coxetas, vício italiano: tudo isso praticou com muitos”, em especial com o ator “travestido” Doroteu Antunes, um de seus amantes.

Antes mesmo de aportar em Salvador, Delgado se livra das penitências do Tribunal do Santo Ofício por um golpe de sorte. Arruma um emprego na tenda do respeitado comerciante Adamastor Beirão, que, quando padece, entrega-lhe a mão da afilhada excêntrica, Florência. A solitária e pura moça é quem cuida da contabilidade da casa comercial, o que sempre garantiu à família bonança e certos privilégios. Ligada à leitura e à escrita, a moçoila adquire papéis e tinta da China para preencher páginas em segredo. Reflete sobre sua vida casta e espiritual, embora não seja beata ou carola. Amiga-se a Luiz para não acabar na miséria e, em pouco tempo, constroem uma fachada à prova de ruína na alta sociedade. Até o Diabo atentar, como dirá Delgado em julgamento. Mas neste intervalo, vão-se anos e romances tórridos do violeiro com outros homens, passados no algodoal, debaixo de cajueiro e até num antro famoso na capitania. À concubina, cabe-lhe o zelo pelas aparências. No anonimato, ela escreve.

“Sodomita” foi escrito baseado no trabalho hercúleo do professor Luiz Mott, que transcreveu direto da Torre do Tombo os autos dos processos contra Delgado e outros acusados do crime de sodomia que habitavam a São Salvador nos anos 1600. São mais de 200 peças que descreviam o pecado em diversos tons. De gênio a monstro, Delgado se tornou verbete de uma espécie de dicionário geográfico dos sodomitas baianos processados pela Inquisição.

* Matheus Lopes Quirino é jornalista

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