Clarice Lispector dizia que seus textos mais “herméticos” eram também os mais “compreensíveis” e “envolventes”. O que talvez explique por que uma de nossas autoras mais misteriosas é também uma das mais populares. A escritora nascida num dia 10 de dezembro na Ucrânia, há 103 anos, e radicada no Brasil completa este mês 80 anos de sua estreia literária (o romance “Perto do coração selvagem”), sempre presente na cultura do país.
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Sua figura segue sendo cultuada pelas novas gerações e seu universo, influenciando a indústria pop. Já inspirou clipe da cantora Luísa Sonza (“Penhasco”) e é frequentemente citada por artistas, dos irmãos Sandy & Júnior a Caetano Veloso. Seu rosto já virou até tatuagem no braço do rapper Filipe Ret.
![Famosa entrevista de Clarice inspirou Luisa Sonza no clip "Penhasco" — Foto: Reprodução youtube](https://s2-oglobo.glbimg.com/8_6-dq8k3GEuKlV2ARBKds_39uQ=/0x0:1971x721/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2023/2/m/77EYQEQpWwVlaGav27sw/penhasco.jpg)
As livrarias também atestam a sombra de Clarice nesta efeméride. Uma série de novos lançamentos exploram o legado da autora brasileira mais traduzida no mundo. “Macabéa, flor de mulungu” (Oficina Raquel), de Conceição Evaristo, faz uma releitura da personagem de “A hora da estrela” (1977). “Clarice Lispector e o clássico chinês I Ching”, de Marília Malavolta, analisa o interesse da escritora pelo livro oracular chinês. “Sentir um pensamento: frases e reflexões para as 52 semanas do ano” (Rocco), reúne frases pinçadas da obra de Clarice, com ilustrações de sua neta, a artista e designer Mariana Valente.
![Filipe Ret: Clarice Lispector tatuada no braço — Foto: Nilo Lima](https://s2-oglobo.glbimg.com/rzdSDicWPaxGyEFwhn0Zw6iQQCs=/0x0:4896x3264/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2023/K/o/att0UnTNSUTwb8desRrw/filipe-ret-por-nilo-lima-67-t.jpg)
Em janeiro, será lançado “Diário de um filme”, que registra o percurso criativo da atriz Maria Fernanda Cândido e do diretor Luiz Fernando Carvalho no longa “A paixão segundo G.H.”, transposição para as telas do clássico da escritora. O livro é assinado por Melina Dalboni, também roteirista do filme, que deve sair no primeiro semestre de 2024.
— Clarice continua muito atraente para as novas gerações porque deixou como ensinamento o valor e a beleza de uma busca — diz Mariana Valente, que também criou uma arte para o Doodle quando o Google homenageou sua avó, em 2018. — Para ela, uma boa pergunta tem mais valor do que uma resposta muito fechada. É uma eterna falta, mas que não para na melancolia e que está sempre rompendo com os limites. Traz essa coragem de se sustentar sempre dentro do abismo, o que é um lugar muito feminino, já que lidamos com a morte diariamente. Mas ela se comunica com todo mundo, mulher, homem, animais...
Os números estão aí para mostrar que Clarice vem reciclando o seu público. Na última Bienal do Livro, evento conhecido por concentrar multidões de jovens leitores, ela foi a segunda autora mais vendida da Rocco, que edita toda a sua obra. Segundo levantamento da editora, seus livros ficaram atrás apenas de J.K. Rowling, a criadora de “Harry Potter”. Os títulos mais populares são “A hora da estrela”, “Água viva”, “A paixão segundo GH” e o agora oitentão “Perto do coração selvagem”.
Quinto da lista, “Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres” ganhou visibilidade com a adaptação para o cinema em 2022, dirigida por Marcela Lordy. A obra também é mencionada na série “A vida pela frente”, dirigida por Leandra Leal e exibida pelo Globoplay.
O enredo mostra o impacto que Clarice pode causar na transição para a vida adulta e a relação visceral que muitos jovens estabelecem com a sua literatura. A protagonista Liz, de 17 anos, presenteia a sua nova amiga, Beta, com um exemplar de “Uma aprendizagem...”. Mesmo “não entendendo muito bem” o que está escrito, Beta fica fascinada com o livro. Liz responde que ela não precisa se preocupar com isso, pois “viver ultrapassa qualquer entendimento” (uma referência a um trecho de Clarice: “Viver era sempre limitado. Mas não entender não tinha fronteiras e levava ao infinito”).
Leandra criou a série com as roteiristas Rita Toledo e Carol Benjamin, baseando-se em acontecimentos marcantes da adolescência delas (a história se passa na virada da década de 1990 para 2000). O que significa que Clarice não poderia ficar de fora.
— Tínhamos muita vontade de falar dela de alguma forma — conta Leandra Leal. — Estudamos a autora no Ensino Médio, algo que foi muito importante para a nossa formação. “Uma aprendizagem...” é um livro que me marcou particularmente. Eu sempre dou de presente para pessoas que estão chegando aos 15 anos, porque acho que a Clarice dá conta de um interior do feminino muito importante e delicado.
Parte do culto em torno de Clarice Lispector se deve à sua turbulenta história de vida e também à sua imagem, que fez dela um ícone de beleza e estilo. Tais aspectos foram ressaltados pela biografia de Benjamin Moser, de 2009, responsável por renovar o interesse por ela na virada da primeira década do século XXI.
Desbravando gerações
Quase 15 anos depois, contudo, os jovens têm chegado a Clarice por outros caminhos, de acordo com a avaliação da escritora, pesquisadora e criadora de conteúdo Beatriz Veloso, de 24 anos. Há dois anos, ela iniciou no YouTube o projeto “Desbravando Clarice”, em que analisa diferentes aspectos da obra da autora.
— Acho que a biografia de Moser tomou um lugar secundário para a geração da qual eu faço parte — diz Beatriz Veloso, que estuda Antropologia na Sorbonne, em Paris, e lançou no ano passado seu primeiro livro de poemas, “Torpedo”. — Talvez a gente se identifique mais com a maneira como ela extravasa em emoções. Ela se comunica com o nosso âmago mesmo.
As respostas que recebe todos os dias em seus vídeos deixou Beatriz com uma certeza: Clarice é um nome que “desbrava gerações” e atrai leitores de diferentes idades e gêneros. Mas ela admite um “efeito Frida Kahlo”, que tornou a persona da autora mais conhecida do que seus livros.
Para o diretor Luiz Fernando Carvalho, focar a “superfície da figura” de Clarice é acessar “apenas uma das faces do prisma”. Por outro lado, ele não concorda com a ideia de que sua literatura seja “experimental”.
— Poderíamos, correndo o risco ético de estereotipar sua escrita, nomear a literatura de Clarice como experimental? Não. A resposta precisa ser sucinta o bastante para rasgar de uma vez por todas com o preconceito velado de hermética que a obra de Clarice arrastou durante toda a sua vida de escritora. Simplesmente não — diz o diretor, que mergulhou em “A paixão segundo GH para seu filme”, mas ressalta não se considera um especialista em sua obra. — Sua escrita não é composta por códigos experimentais. Configura-se como algo desconfortavelmente novo para a literatura brasileira, objeto inclassificável, causando perplexidade até os dias de hoje.