Cultura
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Por — Rio de Janeiro

Quando decidiu raspar a cabeça antes que o câncer de mama provocasse a queda de seu cabelo à revelia, Clélia Bessa transformou aquele momento num ritual feminino. Abriu um vinho, chamou a filha pequena, as amigas fiéis e também as filhas delas.

Fez com que cada mão de mulher presente ali passasse pela tesoura que cortava suas madeixas. Enquanto isso, as crianças aparavam os fios das suas bonecas. A ideia era tornar aquele movimento, conhecido por ser um dos mais dolorosos no processo das que enfrentam a doença, o menos depressivo possível.

Se este foi um momento emblemático da luta de Clélia contra o câncer, promete ser uma cena emocionante de “Câncer com ascendente em virgem”, ficção baseada na história real da produtora de cinema 60 anos, que acaba de ser rodada no Rio de Janeiro.

Idealizado pela própria, que enxergou na experiência particular uma oportunidade de contar uma boa história no cinema, o filme é dirigido Rosane Svartman, sua sócia e grande parceira na vida, a primeira a deslizar a máquina zero pelo cocuruto de Clélia.

A diretora Rosane Svartman: "Acho importante falar nesse assunto agora, num momento em que vejo crescer o número de casos dessa doença tão feminina, e também a quantidade de mulheres que a superam, "  — Foto: Alexandre Cassiano
A diretora Rosane Svartman: "Acho importante falar nesse assunto agora, num momento em que vejo crescer o número de casos dessa doença tão feminina, e também a quantidade de mulheres que a superam, " — Foto: Alexandre Cassiano

Nas telas, é Suzana Pires quem interpreta a professora de matemática e influencer educacional Clara, protagonista inspirada em Clélia. Marieta Severo faz a mãe divertida e esotérica da personagem.

Assim como Clélia na vida real, as atrizes estavam cercadas de mulheres no set de filmagem. Montado no Grajaú, semanas atrás, o terreno era comandado majoritariamente por um time feminino.

Equipe no set de filmagem, montado em uma casa no Grajaú — Foto: Alexandre Cassiano
Equipe no set de filmagem, montado em uma casa no Grajaú — Foto: Alexandre Cassiano

Quando recebeu o diagnóstico da doença, aos 44 anos, Clélia foi em busca de informações. Só encontrou, lembra, literatura de autoajuda.

- Sabia que ia sofrer modificações físicas e queria entender como se davam. Também queria ler coisas que me divertissem. Já sabia que não ia morrer, era um câncer específico, que tinha cura. Claro que não era bolinho, não quero romantizar. Mas, hoje, com diagnóstico precoce, há 90% de chance de cura – ressalta ela.

Resolveu, então, desmistificar a doença. Criou, em 2008, o divertido e emocionante blog “Estou com câncer, e daí?”. Nele, compartilhava suas experiências com quem se interessasse, “evitando encher o saco dos amigos”.

- Quando a gente está com uma doença, não consegue falar de outra coisa, que nem quando está grávida. É algo que se vive intensamente e não precisa compartilhar com quem não está vivendo - analisa. - Minha ideia era tirar o câncer do armário. E o blog foi meu companheiro durante um ano e meio, do diagnóstico à reconstrução da mama. Me abriu portas, fui chamada para dar palestras, ganhei prêmio de blogueira, foi importantíssimo para mim.

Não só para ela. Várias mulheres encontraram forças para encarar, por exemplo, o tão temido momento de raspar a cabeça.

- Para muitas, é pior que sentença de morte. Algumas não fazem tratamento para não perder o cabelo. O processo todo da doença mexe muito com a feminilidade. A cirurgia de mama é invasiva, mas a gente sobrevive – ensina. - Claro que estou falando de um lugar de privilégio. O blog alcançou muitos tipos de mulheres, que me devolviam coisas... Eu ficava desesperada. Uma hora pensei em parar. Não me metia na vida de ninguém, mas só o fato de estar com vontade de viver, mexia com muita gente.

Direta e reta, Clélia dava seus recados e recebia de volta relatos de mulheres encorajadas a largar maridos zero à esquerda ou a lidar com o pé na bunda de homens que as abandonaram no meio do tratamento.

- É que nem prisão. Você vê homem visitando mulher em presídio feminino? Não, né? Em compensação, a fila de mulheres no masculino é enorme – constata ela.

Não à toa, a produtora fez questão de incluir no filme o personagem de um marido (Heitor Martinez) que não solta a mão da mulher (Fabiana Karla) doente. Considera esse recado importante.

Fabiana Karla está no elenco do filme 'Câncer com ascendente em escorpião' — Foto: Mariana Vianna
Fabiana Karla está no elenco do filme 'Câncer com ascendente em escorpião' — Foto: Mariana Vianna

Conhecida no cinema pelo alto-astral, Clélia encarou a doença com esse mesmo espírito. Para se ter uma ideia, ela ia de bicicleta à quimioterapia. Também posou nua para um ensaio de fotos de despedida do seio. Saiu fantasiada de "pirata de um peito só" no carnaval.

Claro que barras pesadas rolaram. Como a perda do pai para um câncer de pulmão avassalador durante seu tratamento. Também teve questões com vaidade. Recorreu à pigmentação na sobrancelha, que nunca mais nasceu igual, e colocou cílios. De resto, como diz, entrou “no personagem”.

- Quis viver essa experiência intensamente. Pensei: “Se fui sorteada, vou encarar isso e me transformar”. Fiz quimioterapia, tirei o seio, fiz radioterapia e só depois de um ano fiz a reconstrução. Meu médico falou que era melhor fazer radioterapia sem silicone. Foi um processo de autoconhecimento... Ser uma pessoa mutilada te leva a outro lugar.

Grande parte de toda essa história estará no filme, conduzido pelo mesmo clima “dramédia” que havia nos relatos de Clélia no blog. Ela acompanhou as filmagens de perto. Algumas cenas a fizeram elaborar melhor emoções vividas naquela época. Ao mesmo tempo, precisou se policiar para não interferir do ponto de vista psicológico.

- Às vezes, me dá um gatilho, percebo coisas que não tinha me dado conta. Minha filha tinha 11 anos e, agora, quando viu cenas, me disse: “Mãe, não tinha ideia que você tinha passado por isso”. Tem um momento no roteiro que choro só de ler. Como você conta para a mãe que está com câncer? E para a filha? Câncer é uma palavra que vem carregada de missa de sétimo dia – define.

A passagem do longa em que Clara e a filha pactuam uma solidariedade mútua também mexe demais com ela.

- O filme está me reorganizando. Estou fechando um ciclo determinante, que me levou a rever muitas escolhas. Porque o que vivi não foi só um processo médico, mas de interiorização. No meu caso, vira até entretenimento – brinca. - É preciso fazer filmes que importam, não dá mais para fazer só por fazer. Entretenimento tem que vir acompanhado de uma informação útil para alguém, que pode mudar a vida. Quando eu tinha 16 anos, meu professor passou (o filme) “Deus e o diabo na Terra do sol” (de Glauber Rocha). Ali eu entendi que o mundo era muito maior que a minha Manaus. E dei um jeito de sair de lá.

Rosane concorda.

- Acredito cada vez mais em projetos com pautas, bandeiras, com algo que seja importante conversar com um público mais amplo, que possa tocar o coração das pessoas, contribuir para empatia, informação, trazer um olhar mais altruísta para o mundo – diz a autora de “Vai na fé” (TV Globo), novela que marcou as telas em 2023 com essas características.

Além do lado pessoal de contar uma história da qual foi testemunha, Rosane é movida pela crença de que o filme pode ajudar a iluminar o tema. Deseja que a trama não só emocione, divirta e crie identificação, mas alerte sobre a doença.

- Acho importante falar nesse assunto agora, num momento em que vejo crescer o número de casos dessa doença tão feminina, e também a quantidade de mulheres que a superam. Tudo nesse tom que mistura delicadeza, responsabilidade, pesquisa e consultoria, riso e choro, como é vida. - define. - Tem uma frase da (médica especialista em cuidados paliativos) Ana Claudia Quintana Arantes que eu amo e pus no filme. Diz que morte não é o contrário de vida, mas de nascimento. Vida é o que tem no meio. Essa é a ideia: trazer um novo olhar para as pequenas imensas alegrias, para o quão precioso é cada momento.

‘Foi como se estivesse em carne viva emocional’, diz Suzana Pires

Suzana Pires raspou a cabeça para encarnar a protagonista do filme 'Câncer com ascendente em virgem' — Foto: Mariana Viana
Suzana Pires raspou a cabeça para encarnar a protagonista do filme 'Câncer com ascendente em virgem' — Foto: Mariana Viana

Suzana Pires fez questão de raspar a cabeça de verdade para rodar o filme, uma produção da Raccord com coprodução da Globo Filmes, previsto para ser lançada este ano. A atriz procurou chegar o mais perto possível do estado emocional enfrentado pela protagonista. Ao ter o cabelo cortado, Suzana, que também assina o roteiro (junto com Martha Mendonça e Pedro Reinato), foi às lágrimas.

- Tive um completo desprendimento de vaidade. Foi como se estivesse em carne viva emocional. Não é um lugar fácil de chegar, de me deixar atravessar. Só consegui por causa do acolhimento da equipe, formada, em maioria, por mulheres. E não foi apenas acolhimento pessoal, mas de produção. Saí da minha casa, fiquei hospedada em um hotel. Houve todo um cuidado estrutural e emocional para que a personagem tivesse esse grau de mergulho. Não nos poupamos - conta. - Este é um projeto que, desde o início, pedia muito envolvimento. E pude estar desde o começo. O filme parte da história da Clélia, mas vira a história de todas nós, mulheres - analisa Suzana, que ganhou uma peruca da produtora.

Durante o processo do roteiro, Suzana passava por uma experiência real com o pai, então diagnosticado com câncer de pulmão. O médico deu a ele seis meses de vida. Mas lá se vão oito anos.

- Não é uma doença distante de mim, ela está na minha vida há muitos anos. Quando se tem um diagnóstico desse na família, a morte vira um assunto. Você pode nem falar, mas ela passa a ser presente. E esse tema é algo que a sociedade ocidental não coloca em discussão, há um tabu. A gente foi entendendo no roteiro como, a partir do diagnóstico, se vive com essa bomba relógio dentro de si. O momento de tratar a coisa com humor e as horas em que não há humor algum.

Marieta Severo: megahair para dar um ar hippie a sua personagem, Leda, mãe da protagonista — Foto: Alexandre Cassiano
Marieta Severo: megahair para dar um ar hippie a sua personagem, Leda, mãe da protagonista — Foto: Alexandre Cassiano

Enquanto Suzana ficou careca, Marieta Severo, que interpreta Leda, a mãe da protagonista, colocou megahair. A personagem é uma mulher moderna e esotérica, de bem com a vida, autoconfiante, portelense de coração, que adora uma roda de samba e uma cervejinha. E que, depois do susto, segura as pontas da filha.

- Acho que qualquer história que vá contra estigmatizações e preconceitos é importante de ser contada. E essa é muito especial. Não lembro de nenhum filme brasileiro que tenha tocado nesse assunto dessa forma leve e positiva - diz Marieta..

Ela revela que recebeu o roteiro no mesmo dia em que gravou um vídeo para a campanha Outubro Rosa falando sobre sua batalha contra um câncer no endométrio.

- Pensei: "Não estou acreditando que que recebi esse roteiro justamente hoje". Por esse e todos os motivos pessoais, vi que tinha que ajudar a contar essa história. Na minha época, não se falava a palavra câncer. Todo mundo dizia: "Está com 'aquilo'". É importante derrubar certos dogmas, mostrar que a vida está aí, forte. Leda tem essa função da leveza, do toque positivo. É mística, acredita em tudo. É um ingrediente que ajuda a contar essa história de maneira prazerosa. Ter me permitido reviver isso na ficção está sendo positivo. Porque a arte tem essa função de cura, de mexer em lugares que, às vezes, você não quer revisitar, mas fazendo isso, se transforma.

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