Cultura
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Por — Rio de Janeiro

É a tarde calorenta de uma segunda-feira e, no corredor de asfalto que separa parte das 50 casas individuais que abrigam os residentes do Retiro dos Artistas, Carlinhos Pandeiro de Ouro rodopia o instrumento na ponta do dedo indicador e abre um sorrisão. "Eu que fui um jovem no passado...", cantarola ele.

A frase do percussionista mangueirense, dono de um estilo de tocar famoso mundo afora, cabe a cada um dos que ocupam as moradias daquele oásis de tranquilidade, fincado no bairro de Jacarepaguá.

Após 67 anos rodando em turnês por diferentes países, fazendo pontas em filmes como "O terminal", com Tom Hanks, o intérprete de Sabará, o cabeludo com papagaio no ombro do longa "Rio Babilônia" (1982, de Neville D'Almeida), fincou raízes ali. Aos 82 anos, é o mais novo morador da instituição.

- Nossa, queria muito esse sossego - conta.

Paulo Cesar Pereio: instituição conta com um "embaixador" para se comunicar com o ator, famoso pelo mau humor — Foto: LEO AVERSA
Paulo Cesar Pereio: instituição conta com um "embaixador" para se comunicar com o ator, famoso pelo mau humor — Foto: LEO AVERSA

Quem também chegou há pouco foi o pianista Mauro Continentino, de 80 anos. Um dia, ele visitou o lugar e não quis mais ir embora.

- Aqui é bonito demais - diz.

Entre viver sozinho em um apartamento em Niterói ou conviver com colegas de profissão como Flora Purim, Airto Moreira e Sergio Natureza, Mauro, pai de nove filhos, preferiu a segunda opção.

Seu principal passatempo é tocar o piano do refeitório, que pediu ao primogênito que afinasse. Agora, batalha para consertar o teclado do teatro onde saraus frequentes estreitam os laços entre os moradores.

Outro que encontrou a paz no Retiro é Paulo Cesar Pereio. Isso não significa que deixou o folclórico mau humor de lado... "Morreram todos", responde o ator, sarcástico, quando a repórter puxa assunto dizendo que conhece seus filhos - todos bem vivos, diga-se.

O Retiro conta com um "embaixador" para lidar com Pereiro, brinca o presidente da instituição, o ator Stepan Nercessian. O tal embaixador é Robson Motta, funcionário considerado o anjo da guarda dos residentes.

Mauro Continentino toca o piano do refeitório, que mandou afinar — Foto: LEO AVERSA
Mauro Continentino toca o piano do refeitório, que mandou afinar — Foto: LEO AVERSA

Outro dia, ele aturou até o sermão do dono da padaria, que repreendeu Pereio por ter metido a mão num pão quando só havia pago por um café. "Mas se pode negar pão a um ser humano?", grunhiu Pereio, segundo conta Robson às gargalhadas.

- Tem horas que é tiro porrada e bomba, um se acha mais artista que o outro, vira jardim de infância e a gente tem que ser xerife e psicólogo - diverte-se a administradora do Retiro, Cida Cabral, chamada por ali de "prefeita".

Até as tretas cotidianas, como se vê, viram história para contar. O clima que reina naquele pedaço de chão parece bem distante da situação que Dercy Gonçalves descreveu no discurso de inauguração do centro cultural que leva seu nome, em 2001:

"Na minha juventude, a maior praga que uma atriz poderia jogar na outra era 'você vai terminar seus dias no Retiro do Artistas'".

A comediante recorreu à história para afirmar que o que estava vendo naquela visita contradizia a ideia de que aquele lugar era símbolo de "fim de carreira". Dercy, então, sentenciou que, a partir daquele momento, a praga se converteria numa maneira de desejar o bem.

A boa fama do Retiro tem reverberado. Durante a pandemia, o lugar foi citado numa reportagem da Reuters como exemplo de instituição para idosos sem um caso de Covid sequer. Há uma lista de espera por vaga. O percussionista Robertinho Silva encabeça.

O critério é sempre a necessidade - e também a vontade. Ninguém vai morar lá se não quiser. O mais necessitado da fila, entra. Basta ter relação com o mundo das artes. Certa vez, a administração resgatou Célia Paixão, atriz que havia trabalhado com Plínio Marcos. Ela, que já morreu, estava morando dentro de um carro abandonado em Curitiba.

- Todo mundo fala em qualidade de vida e eu não tenho medo de falar que quero trabalhar a qualidade de morte. É importante o conforto de chegar ao final da vida de maneira menos cruel. Com dignidade, até se vive mais - analisa Stepan. - Aqui, a gente resgata a autoestima. Montamos um salão de beleza. Melhoramos a alimentação, o que reduziu à ida ao médico. Há o mito de que idoso não gosta de comer carne. Eles querem comer carne, o que não conseguem é mastigar. Um dentista veio e apertou todas dentaduras.

Cida, Stepan e Robson: trio que segura a onda do dia a dia do Retiro dos Artistas — Foto: LEO AVERSA
Cida, Stepan e Robson: trio que segura a onda do dia a dia do Retiro dos Artistas — Foto: LEO AVERSA

Cida diz que Retiro está longe de ser "um depósito de velhos".

- Tem muita vivacidade aqui.

É sobre a vida que Robson conta aprender diariamente com os moradores.

- Perguntei ao Palhaço Cocada qual era o segredo para chegar aos 100 anos que ele tinha. Ele disse: "Não sei, só sei que passa rápido. O conselho é aproveitar a vida". Flora Purim me ensinou a respirar por 30 segundos para pensar com calma.

Mesmo com todas essas histórias e mais de 20 anos após a fala de Dercy, a administração ainda peleja para manter as contas fora do vermelho. Elas são pagas graças à contribuição de alguns residentes e suas famílias, à venda de roupas de um brechó público e ao aluguel esporádico do teatro para eventos. Há também um curso de teatro cuja metade da mensalidade vai para o Retiro, além de doações esporádicas de colaboradores.

O Retiro entra 2024 com um déficit de cerca de R$ 50 mil, que estava sendo pago, até o fim do ano passado, por um político que prefere permanecer no anonimato. Este ano, quando completará 106 anos, a administração sonha com a restauração do casarão tombado original, do teatro Iracema de Alencar e com a implantação de um projeto de energia solar, que resolveria a conta de luz de R$ 30 mil mensais.

- Tem horas que eu fico p... Não é possível que a gente, depois de 105 anos de existência, ainda esteja com dificuldade de manter o que aqueles caras lá atrás, pensando em seus colegas, na classe, fizeram. Leopoldo Fróes e os outros fundadores construíram isso aqui quando tudo em volta em um pântano...

O telemarketing é usado como recurso de captação.

- É ruim ficar ligando para as pessoas para dizer "ajuda os velhinhos". Parece que está todo mundo ferrado. Mas se falar que está todo mundo bem, ninguém ajuda - diz Stepan, que recentemente conseguiu que uma empresa fornecesse plano de saúde aos residentes.

Moradores e casas coloridas no Retiro dos Artistas: luta para ficar no azul — Foto: Leo Aversa
Moradores e casas coloridas no Retiro dos Artistas: luta para ficar no azul — Foto: Leo Aversa

Ele lembra que o Retiro foi criado para colher desgarrados de companhias estrangeiras que eram abandonados após apresentações pelo Brasil.

- As companhias brasileiras eram consideradas de segunda categoria e não podiam se apresentar nos grandes teatros, como o Municipal e o João Caetano. Então, se apresentavam em circos. Enquanto isso, grupos estrangeiros ocupavam os teatros. Na volta para seus países, acabavam levando apenas os maestros e atores principais, e largavam outros artistas pelo caminho. Ficava um monte de artista abandonado na Praça Tiradentes, que era chamada de "ponto", esperando trabalho. Ainda peguei alguns artistas portugueses e espanhois no Retiro, mas, hoje, só há brasileiros.

Para o presidente da instituição, falta mobilização da classe artística para ajudar o Retiro.

- Vou atrás de empresário, advogado e político para pedir que não cortem a água. Mas artista tem que ter consciência, deviam vir aqui sempre. Quando vêm, ficam encantados. Fui até num psicólogo para entender por que os artistas se mobilizam até para salvar hamster e aqui temos que pedir pelo amor de Deus. O psicólogo respondeu que talvez seja resquício daquele passado, de eles não quererem se ver nessa imagem de "olha o que vai acontecer com você'".

Ney Latorraca ligou para Stepan após uma visita que fez junto com Marília Pêra pouco antes de a atriz falecer.

- Ele me disse que da última vez havia saído chorando de tristeza pelo que tinha visto. Mas que daquele vez, estava chorando de alegria. Imagina o que significa, nesse mundo de merda em que estamos vivendo, para um idoso saber que está seguro, com seis refeições por dia e medicamento garantido? - questiona Stepan.

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