No dia 5 de fevereiro, a família de Sérgio Sant’Anna avisou no seu perfil póstumo no Facebook que o apartamento em que o autor viveu em Laranjeiras, Zona Sul do Rio, estava disponível em uma plataforma de aluguel por temporada.
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A notícia pegou de surpresa os leitores de um dos grandes contistas brasileiros, duas vezes vencedor do Jabuti. O imóvel de três quartos está recebendo hóspedes desde agosto do ano passado, mas a sua relação com o autor de livros como “O voo da madrugada” e “Páginas sem glória” vinha sendo pouco explorada.
Ele morou no local de 1978 até a sua morte, em maio de 2020, aos 78 anos, por complicações de Covid-19. No anúncio do apartamento “recém-reformado por arquiteto” e “com vista livre para o Cristo”, há apenas uma discreta menção ao escritor. Até o momento, nenhum dos sete hóspedes que escreveram na área de comentários da plataforma mencionou o fato.
Isso deve mudar com a divulgação do anúncio nas redes do autor. Filho de Sérgio, o também escritor André Sant’Anna conta que a família providenciará uma biblioteca com a obra completa do pai, além de livros de outros autores de que gostava.
— A princípio, não esperávamos que isso tivesse algum interesse para os hóspedes, mas, ultimamente, temos recebido mensagens de gente interessada em Sérgio Sant’Anna — diz André, que confirma a importância do imóvel na vida e na obra do autor. — O imóvel foi dado a ele pelo meu avô. Meu pai se aposentou aos 50 anos e, de lá, até os 80, quando morreu, o apartamento foi cenário de quase tudo o que ele fez.
Quase todos os móveis que eram do autor continuam no apartamento. Além de desfrutar da vista livre para o Cristo que o inspirava, o hóspede poderá sentar em sua escrivaninha e até dormir na sua cama.
— Meu pai vivia para a literatura, embora sempre tenha sido bastante angustiado com isso — diz André, que morou com o pai de 1979 a 1990. — Ele sempre começava a escrever a mão, sentado em uma cadeira de balanço. Só depois é que datilografava ou digitava no computador.
Ambiente de ficção
Enquanto viveu no endereço, Sérgio Sant’Anna teve uma ou duas namoradas que passavam bastante tempo por lá, mas que sempre moraram em outro lugar. No início dos anos 1990, após se aposentar como professor universitário, ele passou a cultivar uma certa solidão, conta André.
Foi nesse contexto que o apartamento e o seu entorno (os bairros de Laranjeiras, Flamengo, Catete e Largo do Machado) acabaram invadindo o universo ficcional do autor e se tornando cenários recorrentes de sua geografia literária.
![Sala de estar do apartamento de Sérgio Sant'Anna, com vista para o Corcovado (ao fundo) — Foto: Reprodução Airbnb](https://s2-oglobo.glbimg.com/JJtbp6aJBY5OWDQ02y6tXPuil0k=/0x0:1200x800/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2024/1/d/unekVoQj6kjslGjV3ZnA/3f97cd71-8c0d-4671-9b06-ecc61cf59d3f.webp)
Na novela “Um crime delicado”, os personagens se encontram no metrô do Largo do Machado. Em um de seus contos mais conhecidos, “O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro”, a festa de aniversário do narrador acontece no bar e restaurante Lamas, fundado em 1874, e que tinha Sant’Anna como um de seus mais prestigiosos habitués.
— Dá para sentir que em seus últimos livros o mundo físico dele foi ficando menor, enquanto o mundo da memória ganhava um papel cada vez mais importante — diz o contista Gustavo Pacheco, seu amigo e discípulo. — Uma coisa parecia compensar a outra.
Leia entrevista de Sant'Anna em 2016: 'Eu namoro o nada'
A residência em Laranjeiras serviu de cenário para ao menos duas pequenas obras-primas, aponta o amigo e escritor André Nigri. Em “O conto obscuro”, do premiado “O anjo noturno”, a história se passa inteiramente dentro do imóvel. O narrador recebe a ex-namorada e senta-se com ela na sala. A personagem da mulher foi inspirada em uma artista plástica com quem o escritor teve um longo relacionamento.
— Sérgio tinha uma pequena tela a óleo dela que às vezes ficava na sala — lembra Nigri.
O outro conto citado por Negri é “A bruxa”, do volume “Conto zero”. O autor recebe a visita de uma bruxa no seu quarto e mergulha em reminiscências que vão do seu encontro com Clarice Lispector à sua mudança para o imóvel em Laranjeiras.
Com a saúde debilitada nos últimos anos, o escritor ficava a maior parte do tempo em casa. Quando saía, raramente cruzava as fronteiras de seu “país”, o território que vai de Laranjeiras ao Lamas. Foi necessário muita paciência para convencê-lo a participar da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em 2018. Andando de bengala pela cidade histórica, sofreu com o calçamento.
Sant’Anna zelava por sua intimidade até mesmo entre amigos. Pacheco visitou diversas vezes o apartamento de Laranjeiras, mas não passava da sala e da cozinha.
— Nunca entrei no seu quarto — conta Pacheco. — O apartamento tinha aquele clima de homem solteiro, meio bagunçado. Lembro que ficávamos sentados bebendo cerveja, e eu queria falar de literatura. Mas ele sempre puxava para outros assuntos, política, futebol. O Fluminense era uma presença muito forte na vida dele e dentro da sua casa também
Em uma das paredes da sala, Sant’Anna havia pendurado uma velha foto do time amador do Fluminense de 1932, que contava na escalação com o tio do escritor, o goleiro Luiz Andrade. Frequentador assíduo de estádios na adolescência, o autor ficava com a TV ligada direto nos jogos do Tricolor das Laranjeiras. E vivia reclamando do time para os convidados.
Visão da vizinhança
Em 2021, Gustavo Pacheco e André Nigri organizaram a coletânea “O conto não existe” (Cepe), uma reunião de textos críticos de Sant’Anna e de algumas de suas melhores entrevistas. Em uma delas, a jornalista portuguesa Isabel Lucas, do jornal Público, pergunta a ele o nome de um morro que se vê da sua janela. O autor se desculpa pela ignorância: mesmo residindo desde 1978 no local, não sabia dizer. Em seguida, comenta que o morro tapava os tiros que costumava ouvir em épocas de conflito na comunidade próxima.
“É um bairro tranquilo, mas acontecem coisas”, continua o escritor: “Já fui assaltado, uma vez na esquina ali em cima e outra num ônibus. Mas atualmente não ando de ônibus. Me sinto inseguro e também por comodismo.”
Celebrado por diferentes gerações, Sérgio Sant’Anna continuou, até o fim da vida, recebendo em casa exemplares de outros autores, muitos deles estreantes. Com isso, acabou acumulando caixas e mais caixas de livros, que dividiam espaço com os poucos móveis da residência.
— Ele brincava dizendo que, se lesse tudo, não faria outra coisa na vida — conta Nigri.
Depois da sua morte, alguns desses “recebidos” ressurgiram em livrarias, com as dedicatórias de seus autores. O próprio Pacheco comprou um lote no sebo Jacaré, em Laranjeiras. Uma prova de que seus admiradores seguem mobilizados para preservar a memória do contista.
Aluga-se: experiência literária
Para o romancista Breno Kümmel, o aluguel da antiga residência de Sant’Anna abre possibilidades de experimentações literárias para escritores e pesquisadores. Muitos poderiam, por exemplo, comparar a sua descrição da vista da janela com a paisagem real. Ele vê na experiência um possível “conto fantasmático com início já feito”.
A ironia, pontua Kümmel, é que o valor da diária pode não caber no orçamento de muita gente que se dedica à literatura no Brasil.
— Existe uma aura de pisar no lugar que o autor estava quando produziu os seus textos — diz Kümmel. — É um sentimento da ordem da idolatria ou superstição.
No exterior, diversas residências de escritores famosos aparecem nas plataformas de aluguel por temporada. O exemplo mais luxuoso é o do inglês Ian Fleming (1908-1964), o criador de James Bond. Seu exclusivíssimo retiro na Jamaica poderia ser cenário de uma história do famoso espião. Tem “serviço de luxo” e até um mordomo disponível todos os dias da semana. A diária sai pela bagatela de R$ 30 mil.
Procurando bem, encontra-se para alugar as antigas moradias de autores canônicos como James Joyce e Jane Austen. A casa no Alabama (EUA) onde moraram Scott e Zelda Fitgerald nos anos 1930 funciona hoje como museu no primeiro andar e hospedagem na parte superior (a “Suíte Zelda”).
Há opções mais em conta, como hotéis que foram importantes na vida dos autores. O marroquino El Muiniria, em Tanger, recebeu diversos nomes da beat generation nos anos 1950. O quarto 9, em que William Burroughs escreveu “O almoço nu” enquanto delirava sob efeito de drogas, é hoje um cômodo privado dentro do hotel, mas recebe visitas. Já os quartos em que se hospedaram Jack Kerouac e Allen Ginsberg ainda estão disponíveis para alugar.