Se a memória da cidade não fez justiça a Zaquia Jorge, a vedete que saiu de Copacabana para montar um teatro na Zona Norte, o samba fez. Sua morte trágica, por afogamento, aos 33 anos de idade, no mar da Barra da Tijuca, ecoou em “Madureira chorou”, um grande sucesso do rádio de 1958, gravado até na França. E depois no carnaval de 1975, quando ela foi homenageada pelo Império Serrano, sendo que uma das composições derrotadas na competição do samba-enredo foi gravada com muito sucesso por Roberto Ribeiro: “Estrela de Madureira”.
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Só agora, porém, sai a primeira biografia da atriz, que completaria 100 anos em 2024. Intitulada justamente de “Estrela de Madureira”, é a primeira obra de não ficção do escritor Marcelo Moutinho (ganhador do Jabuti em 2022 com as crônicas de “A lua na caixa d’água”). Foram cinco anos de pesquisa para desvendar um dos grandes mitos do bairro em que nasceu.
— Meu pai falou que “Estrela” tinha sido um samba-enredo feito para uma vedete, e logo em seguida descobri que “Madureira chorou” também tinha sido feito para ela — recorda-se Moutinho, que autografa o livro no próximo dia 6, no bar Al Farabi, no Centro do Rio, com roda de samba de Pedro Paulo Malta e participação da Velha Guarda do Império Serrano. — Acho que Zaquia está numa espécie de memória coletiva difusa. As pessoas sabem que ela foi uma vedete, que morreu afogada jovem, no auge, mas a rigor não sabem nada da história dela.
À frente do seu tempo
Personagem que levou multidões ao seu funeral, estampado nas capas de praticamente todos os jornais do Rio, em 1957, Zaquia chegou aos dias de hoje como a história não contada de uma mulher à frente das outras do Brasil dos anos 1940 e 1950.
— Vi que várias pessoas tinham tentado (escrever sobre Zaquia) antes, e para mim está muito claro por que desistiram: porque todo mundo (que poderia falar sobre ela) morreu — conta Moutinho. — Basicamente, conversei com vedetes que trabalharam com ela muito jovens, ou com o Daniel Filho, que conheceu Zaquia quando era adolescente (a atriz trabalhou no teatro com os pais do futuro ator e diretor da TV Globo).
Moutinho recupera a história de uma mulher de origem humilde que participou de chanchadas, trabalhou com Dercy Gonçalves, foi pioneira do teatro de revista em Copacabana (ao lado do catalão Juan Daniel e da argentina María Irma López, pais de Daniel Filho) e que abriu, ao lado do marido, um teatro em Ipanema, antes de partir para a empreitada em Madureira, um bairro do subúrbio carioca com uma vida cultural alimentada por clubes, restaurantes e cinemas.
— Muita gente acha que a Zaquia era de lá, mas ela continuou morando em Copacabana até o fim da vida. Na época, Madureira era um bairro muito conservador, e vedete era alguma coisa abaixo de atriz. Ela era vista quase como prostituta — informa o escritor. — Mas, muito habilmente, ela não vai para o embate. Zaquia vai conquistando aquela população e meio que se encanta, eu acho, com aquele ambiente. Ela era uma pessoa muito simples no trato, que conseguia circular muito bem entre públicos menos glamourosos que os da Praça Tiradentes e dos teatros da Zona Sul.
Até chegar a um perfil satisfatório e vibrante de Zaquia Jorge, além de entrevistas, Moutinho teve que percorrer uma romaria por arquivos. Tanto os da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT), onde descobriu roteiros que revelaram “a forma com que ela dá cor local às peças, cuidando para que elas tivessem Madureira, a viagem do trem, a tentativa de empoderamento do subúrbio, como capital do samba”, quanto os da Funarte (que estavam acondicionados em caixas, em plena mudança de um prédio condenado). Junte-se a isso a caça por filmes raros e a consulta a publicações como “Subúrbios em Revista”, dos anos 1950, que ele descobriu em leilões virtuais.
De todo o trabalho para “Estrela de Madureira”, Moutinho saiu com a certeza acerca do inestimável valor da personagem:
— Percebi como Zaquia esteve o tempo todo ligada às formas menores. Trabalhou no teatro de revista, que era considerado um subteatro. Na chanchada, que era considerado um cinema menor. E quando abre um teatro, ela vai para onde? Para o subúrbio. Ela está o tempo todo entranhada num lugar que não é o lugar da nobreza.
‘Estrela de Madureira’
Autor: Marcelo Moutinho. Editora: Record. Páginas: 182. Preço: R$ 84,90.