Cultura
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Por , Em The New York Times — Nova York

Sentado na frente de uma sala de aula no Bronx, o escritor Tommy Orange ouvia um grupo de alunos do ensino médio discutir seu romance “Lá não existe lá”. Um jovem de óculos azuis ergueu a mão. “Todos os personagens têm algum tipo de desconexão, e até de trauma. Este é o mundo em que vivemos. Está ao nosso redor. Não é algo que acontece em uma terra distante. É literalmente o vizinho do lado”, comentou Michael Almanzar, de 19 anos.

A turma soltou uma rodada de estalos de dedos, como se estivéssemos em uma competição de poesia da velha guarda no Lower East Side de Manhattan, e não em uma aula de inglês na Millennium Art Academy, na esquina das avenidas Lafayette e Pugsley.

Orange absorveu tudo com gratidão e humildade – o semicírculo de adolescentes sérios e engajados; o quadro de avisos decorado com palavras que descreviam “Lá não existe lá” (“esperança”, “luta”, “luto”, “descoberta”); a prateleira de exemplares surrados com sobrecapas em vários estágios de desgaste.

Ele ergueu as sobrancelhas quando um aluno que usava um moletom com os dizeres “Sou o sonho mais louco dos meus ancestrais” comparou o seu livro a “A estrada”, de Cormac McCarthy. Quando três alunos consecutivos falaram sobre como se relacionavam com sua obra por causa das próprias dificuldades com a saúde mental, Orange já estava quase chorando. “O que mais me incentivou a vir à leitura foi a sensação de que você não está tão sozinho quanto imaginava”, disse Orange.

Não é sempre que um autor entra em uma sala cheia de leitores, muito menos de adolescentes, que falam sobre personagens nascidos em sua imaginação como se fossem seres humanos vivos. E é igualmente raro que os alunos passem algum tempo com um autor cujo mundo ficcional parece um refúgio. De todas as visitas a salas de aula que fez desde que “Lá não existe lá” foi lançado em 2018, Orange admitiu que essa, na Millennium Art Academy, lhe trouxe a conexão mais intensa que já experimentou.

O catalisador da visita foi Rick Ouimet, vigoroso professor de inglês, com rabo de cavalo, que trabalha há 25 anos no prédio que parece uma fortaleza. É o tipo de professor do qual os alunos se lembram, seja por suas contribuições ao vocabulário literário deles — sinédoque, bildungsroman, quiasmo —, seja por seu telefone flip caindo aos pedaços.

Ele tomou conhecimento do livro “Lá não existe lá” por meio de um colega cujo filho o recomendou durante a pandemia:

— Desde o primeiro parágrafo, percebi que era um livro com o qual nossos filhos se identificariam.

O romance acompanha 12 personagens de comunidades nativas na preparação para um encontro (powwow) em um estádio em Oakland, na Califórnia, onde ocorre uma tragédia. “Orange conduz o leitor pela ponte levadiça, que então começa a se abrir”, escreveu Dwight Garner, crítico do New York Times, quando o livro foi lançado. Foi um dos dez melhores livros de 2018 do Times e finalista do Prêmio Pulitzer. De acordo com a editora de Orange, mais de um milhão de cópias foram vendidas.

O palpite de Ouimet se mostrou verdadeiro:

— Os alunos gostam tanto do livro que nem percebem que o estão lendo para a aula de inglês. É um achado raro, uma dádiva.

Alunos do ensino médio participam de uma discussão com Tommy Orange sobre seus livros durante uma visita do autor à Millennium Art Academy no Bronx — Foto: Hiroko Masuike/The New York Times
Alunos do ensino médio participam de uma discussão com Tommy Orange sobre seus livros durante uma visita do autor à Millennium Art Academy no Bronx — Foto: Hiroko Masuike/The New York Times

Algumas estatísticas relevantes: os índices de frequência escolar na Millennium Art estão abaixo da média da cidade. Oitenta e sete por cento dos alunos são de famílias de baixa renda, o que está acima da média da cidade.

Nos três anos desde que o romance de Orange se tornou um dos pilares do currículo da Millennium Art, os índices de aprovação dos alunos no exame avançado de literatura mais do que dobraram. No ano passado, 21 dos 26 alunos obtiveram crédito universitário, superando as médias estadual e global. A maioria deles, segundo Ouimet, escreveu sobre “Lá não existe lá”.

Quando perguntaram a três alunos no corredor da escola, decorado com arte, quais eram seus personagens favoritos do livro, todos responderam sem hesitar. Era como se Tony, Jacquie e Opal fossem pessoas que eles poderiam encontrar no supermercado.

Briana Reyes, de 17 anos, comentou:

— Eu me identifiquei muito com os personagens, principalmente porque tenho parentes que abusam de álcool e drogas.

Capa da edição brasileira do livro "Lá não existe lá", de Tommy Orange — Foto: Reprodução
Capa da edição brasileira do livro "Lá não existe lá", de Tommy Orange — Foto: Reprodução

No mês passado, Ouimet soube que Orange, que mora em Oakland, estaria em Nova York promovendo seu segundo romance, “Wandering stars” (Estrelas errantes, em tradução livre). Uma ideia começou a surgir. O professor nunca havia convidado um autor para ir à sua sala de aula antes; essas visitas podem ser caras e, como ele bem observou, William Shakespeare e Zora Neale Hurston não estão disponíveis.

Ouimet disse que passou mais de uma semana pensando no que escrever, e no dia quatro de março, logo depois da meia-noite, mandou uma mensagem para o departamento de palestrantes da editora Penguin Random House:

— O e-mail parecia um rascunho tosco, mas procurei não ficar angustiado. Foi como fazer de novo a redação do vestibular.

O texto de 827 palavras foi escrito no estilo arrojado que Ouimet incentiva em seus alunos, cheio de personalidade, cores e detalhes, sem a linguagem corporativa que se infiltra em grande parte do que consideramos “correspondência profissional importante”.

Ouimet escreveu: “Em nossa sala de aula de inglês do 12º ano, em nosso canto diversificado do sul do Bronx, em um bairro urbano com poucos recursos, mas vibrante, não muito diferente de Fruitvale, você é nosso astro do rock. Mais do que nosso astro do rock. Você é nosso MF Doom, nosso Eminem, nosso Earl Sweatshirt, nossa Tribe Called Red, nosso Beethoven, nosso Bobby Big Medicine, nosso e-mail para o Manny, nossa mulher etnicamente ambígua na mesa ao lado, nossa câmera apontando para um túnel de escuridão.”

‘Você mudou vidas’

Ele acrescentou que Orange é um herói para esses jovens: “Você mudou vidas.” Por exemplo, a de Tahqari Koonce, de 17 anos, que traçou um paralelo entre o Coliseu de Oakland e o Coliseu Romano; Natalia Melendez, da mesma idade, que observou que uma arma branca simboliza a opressão contra as tribos nativas; e também Dalvyn Urena, de 18 anos, que disse que nunca tinha lido um livro inteiro até “Lá não existe lá”, e agora o comparava a um soneto de Shakespeare.

Ouimet concluiu com: “Bem, valeu a pena tentar. Obrigado por dedicar seu tempo à leitura deste texto, caso ele chegue até você. Com apreço (e admiração), Rick Ouimet.”

— Eu me arrisquei, mas por que não faria isso? Meus alunos se arriscam toda vez que abrem um novo livro. Eles reclamam, mas abrem o livro. E ver o que eles sentiram ao ler esse? Foi muito amor — afirmou o professor.

Em poucas horas, a mensagem chegou a Orange, que estava no meio de uma turnê de 24 cidades com os dias cheios de entrevistas e eventos. Ele pediu a Jordan Rodman, diretora sênior de publicidade da Knopf, que fizesse o possível para incluir a classe de Ouimet no roteiro, sem cobrar nenhuma taxa associada. A Knopf doou 30 exemplares de “Lá não existe lá” e 30 exemplares de “Wandering stars”.

Na escola grande e movimentada, cheia de sapatos barulhentos, radiocomunicadores e jovens, pode ser difícil encontrar momentos de silêncio. Mas, quando Orange abriu seu novo romance, dava para ouvir um alfinete cair.

— É importante dar voz às coisas, fazer com que elas soem, da mesma forma que aprendemos a escrever corretamente, pronunciando cada sílaba das palavras. É importante que você se ouça contar suas histórias, assim como é importante que os outros ouçam você contá-las — disse Orange.

Os alunos acompanharam a leitura nos próprios exemplares, com a cabeça inclinada e o pescoço parecendo vulnerável e forte ao mesmo tempo. Seu foco provou que, assim como as aranhas descritas em “Lá não existe lá”, os livros contêm “quilômetros de história, quilômetros de abrigo e armadilhas em potencial”. Nessa quinta-feira cinzenta e indefinida, a obra de Orange oferecia ambos.

O autor Tommy Orange discute seus livros “There There” e “Wandering Stars”, com um grupo de estudantes do ensino médio na Millennium Art Academy, no Bronx — Foto: Hiroko Masuike/The New York Times
O autor Tommy Orange discute seus livros “There There” e “Wandering Stars”, com um grupo de estudantes do ensino médio na Millennium Art Academy, no Bronx — Foto: Hiroko Masuike/The New York Times

Depois de 13 minutos de leitura, vieram as perguntas, rápidas e furiosas, feitas com uma franqueza revigorante: “O que o inspirou a escrever esses dois livros?”, “Octavio morreu?” e, talvez a mais urgente, “Por que ‘Lá não existe lá’ terminou daquele jeito?” Desde “Família Soprano” um desfecho ambíguo não causava tanta inquietação. “Ficamos, tipo: ‘como assim?!’”, disse um aluno, mantendo a última palavra em uma nota alta.

— É uma história trágica. Algumas pessoas detestam isso, e sinto muito — respondeu Orange.

Ele admitiu que não gostava de ler no ensino médio:

— Ninguém me deu um livro e disse: “Este livro é para você.” Também tinha muita coisa acontecendo em casa.

Ele falou sobre como evita o bloqueio criativo (mudando os pontos de vista) e como lê seus rascunhos em voz alta para sentir a sonoridade. Orange compartilhou seu nome cheyenne – Birds Singing in the Morning (Pássaros cantando de manhã) – e apresentou um amigo de infância que o acompanha na turnê.

Durante todo o processo, Ouimet permaneceu em silêncio na lateral da sala. Olhou gentilmente para um bando de garotas tagarelas. Usou uma longa vara de madeira para abrir uma janela. Na maioria das vezes, apenas sorria como um pai orgulhoso em um casamento em que todos estão dançando.

Estudantes exibem cópias do novo livro de Tommy Orange, “Wandering Stars”, enquanto posam para uma foto com o autor (ao centro), na Millennium Art Academy no Bronx — Foto: Hiroko Masuike/The New York Times
Estudantes exibem cópias do novo livro de Tommy Orange, “Wandering Stars”, enquanto posam para uma foto com o autor (ao centro), na Millennium Art Academy no Bronx — Foto: Hiroko Masuike/The New York Times

A verdade é que “Lá não existe lá” não encantou apenas seus alunos: também teve um efeito profundo em Ouimet. Quando começou a ensinar o livro, o professor tinha acabado de deixar o cargo de técnico de futebol e softball, depois de 22 anos.

— Fiquei com medo: se eu não for técnico, ainda vou ser um bom professor? “Lá não existe lá” foi uma espécie de renascimento. Não quero ser muito sentimental, mas de certa forma salvou minha carreira — observou.

Em dado momento, o sino do fim da aula soou. Os alunos se afastaram das carteiras e fizeram fila para pedir a Orange que autografasse seus livros; o autor falou com cada um deles por alguns momentos. No meio do barulho, para quem ainda estava ouvindo, Ouimet incentivou:

— Se você gosta de um livro, fale sobre ele! Se você gosta de uma história, conte para outras pessoas!

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