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Um dos mais celebrados dissidentes da literatura russa, o escritor Serguei Dovlátov (1941-1990) fez de si mesmo o principal personagem de suas obras, num tempo em que a autoficção ainda não estava na moda. Já conhecido no Brasil por “O ofício” e “O compromisso”, que delineiam o retrato da contracultura e do jornalismo soviéticos por meio de uma narrativa ácida e satírica, em que memorialística e ficção se confundem, é com o romance “A mala” que Dovlátov acentua os seus traços e atinge a maturidade do estilo.

Organizado segundo uma estrutura em que nove contos funcionam como capítulos de um romance, o enredo de “A mala” se constrói a partir de objetos do cotidiano que evocam as memórias soviéticas do personagem-autor. Um paletó transpassado, uma camisa de popeline, uma jaqueta de veludo, um gorro de inverno, três pares de meias de crepe finlandesas, luvas de motorista e um cinto de couro de oficial do exército — isso foi tudo o que Dovlátov levou em sua mala quando emigrou para os Estados Unidos, em 1979. Durante quatro anos, a mala permaneceu guardada no fundo de seu guarda-roupas, até que seu filho, por acidente, a descobre.

Como se reunisse os cacos de um passado nostálgico, cada peça da mala esconde uma história corriqueira que, repentinamente, adquire contornos absurdos. Em “O paletó transpassado em perfeito estado”, a simples necessidade de um paletó novo põe narrador diante da missão impossível de encontrar para uma reportagem a mãe heroica ideal do regime soviético — mas, diferentemente da propaganda, todas eram imperfeitas: umas trocavam suas medalhas oficiais por alimentos, outras mantinham clandestinamente pequenos negócios lucrativos.

Em “Os sapatos da nomenclatura”, Dovlátov expõe a sua tese a respeito dos roubos na Rússia como uma prática corriqueira, banal. Roubava-se de tudo: carcaças de bois em frigoríficos, fios em fábricas de tecidos, azulejos, gesso, parafusos, qualquer coisa. Muitas das vezes, esses roubos assumiam um caráter metafísico e não se justificavam por qualquer motivação racional. E então Dovlátov conta como foi que ele próprio afanou os sapatos do prefeito de Leningrado durante uma solenidade.

Em “As luvas do motorista”, Dovlátov conta da ocasião em que fez um bico como ator e saiu vestido como se fosse o tsar Pedro, o Grande, pelas ruas de Leningrado. A fantasia, porém, não causou qualquer espanto entre os transeuntes que o encontraram pelo caminho: os bêbados ficaram tão pouco surpresos com a presença do “tsar” quanto com o Nariz que cria vida no conto de Gógol.

Nada é poupado

O absurdo naturalizado tipicamente gogoliano não é a única tradição a que Dovlátov presta tributo em sua literatura. Visto como crítico da União Soviética, o autor não se alinha à escola de dissidentes ideológicos como Aleksándr Soljenítsin. A sua dissidência não é política, mas artística.

O humor ácido que desfaz em ridículo toda a seriedade sisuda dos tempos de Brejnev remonta às melhores páginas de Vladímir Voinovitch. Contudo, a desadequação aos parâmetros oficiais teve um preço: a publicação de seus contos foi quase sempre vetada na União Soviética durante mais de uma década, o que também foi tratado com ironia: “Graças à censura, meu aprendizado durou 17 anos. Os contos que eu queria publicar naquela época, agora, me parecem uma nulidade.” Sabe-se, porém, que por trás do deboche havia alguma verdade: em seu testamento, Dovlátov proibiu a reedição da obra produzida em solo soviético, antes de sua mudança para os EUA.

No universo dovlatiano, nada é poupado, nem o povo russo, nem o heroísmo soviético, nem mesmo ele próprio, que é o objeto principal de sua ironia. Alcoólatras, ladrões, contrabandistas e estelionatários compõem a vasta fauna de personagens na obra de um escritor que buscou descrever uma Rússia Real em oposição a uma Rússia Oficial, assim como no mundo ocidental esses mesmos personagens eram descritos em detalhes por beatniks e companhia.

É preciso saber, no entanto, que Dovlátov não se refere a essa Rússia Real com desdém. Ao descrevê-la para o filho que a vislumbra por meio dos objetos da mala, ele se volta com afeto para um pedaço de si e para um mundo que se perdeu em algum lugar do passado, mas que ainda é a sua casa, como no verso de Aleksándr Blok que serve de epígrafe para o livro: “Minha Rússia, mesmo sendo assim, és para mim a terra mais querida.”

André Rosa é crítico e doutorando em Literatura Comparada pela UFRJ

‘A mala’

Autor: Serguei Dovlátov. Tradução: Moissei Mountian e Daniela Mountian. Editora: Kalinka. Páginas: 168. Preço: R$ 61,20. Cotação: bom.

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