Cultura
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Por — São Paulo

Nas mais de três mil páginas de “Em busca do tempo perdido”, monumental investigação da memória empreendida pelo escritor francês Marcel Proust (1871-1922), o Brasil é mencionado uma única vez. Em “No caminho de Guermantes”, o terceiro dos sete livros, o olhar ganancioso de um historiador detona um dos emblemáticos episódios de memória involuntária da “Recherche”. “De repente”, o narrador asmático, também chamado Marcel, recorda-se que já vira aquela expressão nos olhos de outro trambiqueiro: “um médico brasileiro que dizia ser capaz de curar meu tipo de falta de ar através de absurdas inalações de essências de plantas”.

Por outro lado, uma compilação das referências proustianas na literatura brasileira talvez ocupasse mais volumes que a própria “Recherche”. Ainda nos anos 1920, décadas antes da tradução em português, a obra de Proust já seduzia nossos escritores, que no começo imitavam canhestramente o francês e depois aprenderam com ele a trabalhar a memória para reconstituir o tempo perdido. No livro “Trois lectures brésiliennes de Proust” (Três leituras brasileiras de Proust), publicado recentemente na França e inédito no Brasil, o pesquisador paulistano Fillipe Mauro examina como a “Recherche” influenciou a prosa memorialista de Cyro dos Anjos, Jorge Andrade e Pedro Nava nos 1960 e 1970. Cada um à sua maneira, eles se inspiraram na estética proustiana para retratar a derrocada da velha elite agrária brasileira, classe social em que nasceram.

Os primeiros devotos brasileiros de Proust foram intelectuais católicos e escritores regionalistas, como o alagoano Jorge de Lima (que era as duas coisas). A história de como a “Recherche” chegou às mãos de Lima dava um romance. Ex-garçom do Hotel Ritz, em Paris, e ex-amante do escritor francês, Henri Rochat passou uma temporada no Recife bancado por uma “tia” (provavelmente o próprio Proust). Foi embora sem pagar a pensão onde se hospedou, deixando por lá volumes autografados da “Recherche”. Um funcionário dos correios aéreos franceses confiou os livros a Lima, que era médico da empresa em Maceió. Professor da Universidade de Rennes 2, na França, Mauro diz que os católicos fizeram uma leitura “moralista” de Proust e “tomaram o tempo perdido por um tempo de perdição”.

— Para esses autores, depois de conhecer todos os vícios da vida parisiense, o narrador encontra a redenção na arte, no esforço poético de revisão da vida. O romance seria uma espécie de confessionário onde o herói proustiano se redime — diz o pesquisador, que apresentou o programa “Em busca da música perdida” na Rádio Cultura FM, de São Paulo, e dá cursos sobre o escritor na plataforma on-line Sala Jaú. — A definição de perdição ficava ao gosto do freguês. Para Jorge de Lima, incluía não só a sociabilidade mundana mas também a homossexualidade e o judaísmo (Proust era filho de mãe judia).

No início, pastiches

No começo, os regionalistas brasileiros produziam verdadeiros pastiches do francês. Em “Segredos de infância”, o gaúcho Augusto Meyer elegeu o minuano, o vento gelado que castiga os pampas, como sua madeleine, o confeito que, embebido no chá, ativa as reminiscências do narrador proustiano. Lima inicia “A mulher obscura” com frases quase idênticas às que abrem “No caminho de Swann”, volume inaugural da “Recherche”. O francês escreve: “Por muito tempo deitei-me cedo”. E em seguida menciona uma vela que se apaga. O brasileiro imita: “Há muito tempo me deitei para dormir”. E aponta para uma lâmpada que “esmorece”.

Autor de “Proust sous les tropiques” (Proust nos trópicos, também inédito no Brasil), o historiador suíço-brasileiro Etienne Sauthier explica que a recepção da obra do francês por aqui reflete “debates identitários” que animavam nossa intelectualidade nos anos 1920. Na época, tanto os regionalistas quanto os modernistas paulistas e os escritores do Rio de Janeiro estavam em busca da identidade nacional. Os regionalistas se inspiraram em Proust para recuperar a província perdida (o potiguar Octacílio Alecrim intitulou suas memórias de “Província submersa”). Já Barreto Filho, sergipano radicado do Rio, adaptou as temáticas proustianas à vida carioca em “Sob o malicioso olhar dos trópicos”, numa operação quase natural, pois a então capital da República via-se como uma espécie de Paris do Hemisfério Sul. Já os paulistas pouco se interessaram por Proust.

Etienne Sauthier conta que as bibliotecas dos modernistas de 1922 abrigam volumes anotados da “Recherche”. Abstiveram-se, porém, de comentar Proust, pois o francês não combinava com o momento cultural que São Paulo vivia.

—O modernismo paulista estava voltado para outra literatura francesa, a de Blaise Cendras (que veio ao Brasil em 1924), a de vanguarda — afirma Sauthier. — Já José Lins do Rego (paraibano) fala do engenho como Proust de Combray (cidade onde o narrador passara a infância). Na mesma toada, no poema “O mundo do menino impossível”, Jorge de Lima descreve um garoto que despreza os brinquedos que os avós trouxeram do exterior e se diverte com sabugos de milho.

A “Recherche” começou a ser publicada no Brasil em 1948, pela Editora Globo de Porto Alegre, traduzida por poetas como Mário Quintana, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade.

— Com uma tradução circulando, o custo estético dos pastiches se tornou muito elevado — diz Mauro. — Nos anos 1960 e 1970, começa uma virada: o que importa não são as alusões a Proust, mas um fazer artístico capaz de salvar dimensões da vida que estavam ruindo por conta do desenvolvimento acelerado.

O pesquisador ressalta que, nos anos 1970, época do Milagre Econômico, a população brasileira se tornou majoritariamente urbana. Descendentes da velha (e empobrecida) elite rural, como Cyro dos Anjos, Jorge Andrade e Pedro Nava, se dedicaram a reconstituir, proustianamente, um tempo e um mundo que não existiam mais. Não à toa, os romances memorialísticos desses autores — respectivamente, “A menina do sobrado”, “Labirinto” e “Baú de ossos” — retratam o depauperamento econômico familiar e trazem cenas em que o protagonista encontra devastada a casa da infância (como a igreja de Combray após Primeira Guerra Mundial).

Cyro dos Anjos e cia.

Dos Anjos narra que o pai, outrora um próspero proprietário de terras, perdeu quase tudo investindo numa fábrica de botões. Quando retorna a Barretos, Andrade descobre que a casa da família será demolida porque o terreno valorizou. Num episódio de memória involuntária na casa de um pintor, ele se recorda da angústia do avô falido, que resistia a entregar sua fazenda ao banco. Nava também é tomado por reminiscências quando uma lâmpada se acende e ele enfim reconhece o lar de sua infância, “aviltado pelos anos e reformas sucessivas”.

O trio publicou suas memórias durante a ditadura militar (embora a primeira parte de “A menina do sobrado” tenha saído em 1963). Nenhum deles foi preso, mas os três expressaram publicamente seu pessimismo com os rumos políticos do país e seus anseios por mais liberdade. Em Cyro dos Anjos, escreve Mauro, a homenagem a Proust denuncia certa rebelião de autor contra o que descreveu como “o desmoronamento de certas instituições”. Em Andrade e em Nava, o diálogo com o francês chama “à mobilização da arte como ação sobre o presente”.

Proust, lembra Mauro, sempre foi uma leitura privilegiada em tempos de chumbo. Por sugestão de seu marido, perseguido por Mussolini, a italiana Natalia Ginzburg se pôs a traduzir a “Recherche”. O escritor Pavlos Zannas fez o mesmo numa prisão do regime autoritário grego. Trancafiado num gulag soviético, Varlam Chalámov se consolava com a prosa de Proust.

— O primeiro interesse de um regime autoritário é quebrar o moral de sua gente. Só assim ele consegue se sustentar. A obra de Proust tem um compromisso tão grande com a interioridade que serviu a esses autores como uma espécie de anestésico, ajudando-os proteger a subjetividade em tempos de aniquilação do moral — diz o pesquisador, que agora pretende investigar o que há de proustiano nas memórias de Caetano Veloso sobre sua prisão na ditadura, narrada em “Verdade tropical”.

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