Cultura
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Por — Rio de Janeiro

Em 2004, quando entrevistou o cantor, compositor, produtor e arranjador Nonato Buzar (1932-2014), o jornalista Hugo Sukman ouviu dele um caso curioso. Na noite de 12 de julho de 1971, o músico caminhava pelas ruas surpreendentemente desertas de Copacabana quando, de repente, tudo que se ouvia era seu tema da abertura da novela “Irmãos Coragem”.

O bairro todo estava ligado no último capítulo — sucesso que inspiraria, naquele mesmo ano, a criação de uma gravadora com missão inicial de lançar LPs com as trilhas da TV Globo. Esta e outras histórias estão em “Som Livre: uma biografia do ouvido brasileiro”, lançamento da Globo Livros que está chegando às livrarias.

O livro retrocede até 1969, quando os diretores Boni (José Bonifácio de Oliveira Sobrinho) e Daniel Filho, mais André Midani (presidente da gravadora Philips) e o produtor Nelson Motta começaram, em noitadas no bar Antonio’s, no Leblon, a burilar a ideia de produzir trilhas sob medida para as novelas da Globo, que passavam a contar histórias mais brasileiras.

O sucesso dos LPs de “Véu de noiva” e “Irmãos Coragem”, lançados pela Philips e recheados com nomes como Elis Regina, Marcos Valle e Tim Maia, atraiu a atenção de um quinto elemento: o produtor musical João Araújo. Um dia, ele perguntou a Armando Nogueira, diretor de jornalismo da emissora: “A Globo nunca pensou em ter uma gravadora?”

Daí em diante, sob a batuta de um João transformado em presidente, a Som Livre aparece no livro como típica heroína de folhetim. Já em 1972 pariu sua primeira obra-prima da MPB: o LP “Acabou chorare”, dos Novos Baianos. Logo depois, antológicas trilhas nacionais, como as de “Gabriela”, de 1975, que tem o luxo de uma canção-tema de Dorival Caymmi cantada por Gal Costa.

Capa do livro "Som Livre: uma história do ouvido brasileiro", de Hugo Sukman — Foto: Reprodução
Capa do livro "Som Livre: uma história do ouvido brasileiro", de Hugo Sukman — Foto: Reprodução

Nos anos seguintes, experimentou vendagens absurdas com suas trilhas internacionais (como a de “Dancin’ Days”, de 1978, que sedimentou no país a moda da discothéque) e lançando um monumento da música brasileira: Djavan, cantor alagoano que tentou a sorte na noite carioca e começou como intérprete de canções avulsas para as trilhas. Chegou ao fim dos anos 1970 dominando as rádios e as lojas de discos com os LPs de uma cantora que havia fracassado na Philips: Rita Lee.

— De fato, a Som Livre constrói a carreira da Rita Lee junto com ela. O (diretor artístico da Philips à época) Roberto Menescal liga para o João Araújo e diz: “Deu tudo errado aqui, pega ela aí.” E o João oferece à Rita tudo o que ela queria — conta Sukman. — E um caso muito interessante é o do Djavan. O primeiro impulso do João é o de arrumar um emprego para ele, e o põe para cantar numa boate. E quem inscreve a música do Djavan no festival Abertura (de 1975, no qual ele ficaria em segundo lugar com “Fato consumado”) é o Boni!

Guilherme Arantes, Alceu, Moraes, Melodia...

Muitos são os artistas que ajudam a contar os primeiros dias da Som Livre. Além de Rita e Djavan (que lançou lá o seu primeiro LP, “A voz, o violão, a música de Djavan”, de 1976), estão ainda Guilherme Arantes (que teve seu primeiro hit, “Meu mundo e nada mais”, na novela “Anjo mau” (1976), e ainda seus primeiros LPs bancados pela Som Livre), Alceu Valença e Moraes Moreira (cuja carreira solo começou lá, e com um grande hit, “Pombo correio”)

Juntos no cast inicial da Som Livre, ainda estiveram nomes como Luiz Melodia, Jards Macalé e o grupo instrumental Azymuth, , cujos músicos participaram em 1969 da trilha de “Véu de noiva” e que em 1975 estourou nas rádios uma música cantada, “Linha do horizonte”. A faixa entrou na trilha da novela “Cuca legal” e no primeiro LP do grupo, uma produção independente cujos custos de gravação, no Estúdio Hawai, foram abatidos com a participação em um disco de forró.

— E aí, o João Araújo, que a gente conhecia da gravadora Chantecler, comprou nosso disco para a Som Livre — conta o baixista e fundador do Azymuth, Alex Malheiros.

O fantástico Guto

Mas o personagem que mais histórias tem para contar da primeira fase da Som Livre em “Uma biografia do ouvido brasileiro” é Guto Graça Mello.

Ele era o jovem violonista e arranjador que, depois de dar uma resposta atravessada a Boni em uma reunião, acabou sendo escalado para compor o tema do programa que a Globo lançaria em 1973: o “Fantástico” (tema esse que só saiu em cima da hora, quando ele estava no berçário com a filha recém-nascida).

Foi Guto quem insistiu para que os temas de novelas não fossem feitos todos por encomenda a um ou dois compositores, mas também pescados entre as novidades das gravadoras. E foi ele a quem Boni ordenou montar, de um dia para o outro, a trilha de “Pecado capital” (1975):

— Liguei para o Paulinho da Viola e falei: “Olha, eu quero que você faça a abertura da novela”. E ele: “Que legal, pra quando?” Eu: “Pra hoje!” Ele se assustou, disse que demorava para compor, mas a gente sentou junto e eu contei para ele o final imaginado pela Janete Clair (que acabou sendo rodado, com o Carlão de Francisco Cuoco sendo alvejado por uma bala e o dinheiro voando de sua maleta). O Paulinho ficou olhando para mim e disse: “Dinheiro na mão é vendaval, né?” Aí ele compôs tudo, melodia e letra, na minha frente, e depois foi para casa.

O produtor Guto Graça Mello, em 1983 — Foto: Luiz Pinto
O produtor Guto Graça Mello, em 1983 — Foto: Luiz Pinto

Produtor que trabalhou com praticamente toda a MPB, de João Gilberto e Tom Jobim a Padre Marcelo Rossi (“só o Chico Buarque nunca me chamou”, ressente-se), Guto Graça Mello atravessa a história da Som Livre de várias maneiras: entre elas, como o cara que disse a João Araújo que ele tinha a obrigação de gravar um disco da banda do filho, Cazuza, o Barão Vermelho, e como o homem com a missão impossível de fazer da apresentadora infantil Xuxa uma cantora.

— Ela vinha da Manchete e a Globo fez um contrato que incluía, além do programa de TV, um disco. Mas quando veio a uma reunião na Som Livre com o namorado, o Pelé, ela disse: “Eu não canto absolutamente nada!” O João Araújo me falou “se vira!” e eu comecei a ficar desesperado, pedia músicas para os artistas e ninguém queria dar... — conta ele, que acabou conseguindo de Aretuza Garibaldi, assessora de imprensa da gravadora, a infantil “Quem qué pão”, o primeiro hit de Xuxa, de 1986, o começo da escalada de inacreditável sucesso da diva.

A maior gravadora 100% brasileira

Mesmo para uma gravadora que teve grandes sucessos na época, como os dois LPs com as trilhas de “Roque Santeiro” (que seguiram o modelo de Guto de combinar encomendas aos artistas e faixas garimpadas em outras gravadoras), a chegada de Xuxa foi algo jamais visto — o “Xou da Xuxa 3” chegou a ultrapassar a marca das 3 milhões. Desde o primeiro “Xou”, discos de ouro, platina e diamante se acumulavam e colaboravam para consagrar a Som Livre como a maior gravadora 100% brasileira.

— No começo, as outras gravadoras nos viam como companhia de marketing que exibia o produto deles, não estavam nem aí. Mas, com o passar dos anos, começamos a virar concorrente — analisa Guto Graça Mello.

No fim dos anos 1990, com a pirataria e a música digital provocando uma crise na indústria fonográfica, a Som Livre passou por adaptações. Mas se manteve firme apostando nas trilhas de novelas, como de “Avenida Brasil” (2012), e em música nova e de qualidade, com o selo Slap (Som Livre Apresenta), que revelou astros como Maria Gadú e Tiago Iorc.

Já na era do streaming, veio um estreitamento de laços com a música sertaneja e o surgimento de outro grande personagem da história da gravadora: Marília Mendonça. A cantora foi um fenômeno que, mesmo após sua morte, numa queda de avião em 2021, continuou sendo, por anos seguidos, o artista mais ouvido do Brasil.

— Marília quis ir para a Som Livre porque associava a gravadora às grandes vendas. Ela dizia: “Os shows são as minhas novelas.” Era o sonho dela — diz Hugo Sukman, para quem as morte de Marília e de Rita Lee (em 2023) e a venda da Som Livre para a Sony (em 2022) põem um ponto final numa história de “consolidação numa indústria cultural no Brasil”. — Acho que agora a gente vive um outro momento, de concorrência internacional.

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