Um amigo em comum disse ao jornalista gaúcho Márcio Pinheiro que Chico Buarque odeia falar sobre os vetos que suas músicas sofreram durante a ditadura militar. Não tem motivos, sejam políticos ou artísticos, para se orgulhar do papel de inimigo número 1 da Censura, o órgão que tolhia a liberdade de criação.
Mas foi esse posto que ocupou, como mostra Pinheiro em “O que não tem censura nem nunca terá”, livro que trata da repressão artística à obra de Chico durante a ditadura militar e está sendo lançado agora, neste período de celebração dos 80 anos do compositor, comemorados no dia 19.
Os embates começaram em 1966 com o veto ao samba “Tamandaré”, considerado ofensivo ao patrono da Marinha, o Marquês de Tamandaré. Em 1968, houve toda a polêmica em torno da encenação de “Roda viva”, a primeira peça de Chico, dirigida por José Celso Martinez Corrêa. O grupo autointitulado Comando de Caça aos Comunistas chegou a espancar atores. E, após temporadas tumultuadas em Rio, São Paulo e Porto Alegre, o espetáculo foi proibido em outubro.
Mas Chico se tornou o artista mais visado pela ditadura após ludibriá-la em 1970. Os censores não perceberam que “Apesar de você” não era um samba de amor, mas um recado ao regime. Quando foram alertados, a partir de notas na imprensa, determinaram a caça aos discos, que foram destruídos. Porém, mais de cem mil unidades já tinham sido vendidas.
- Você é fã de Chico Buarque? Ouça um trecho e tente adivinhar as músicas
E Chico conseguiu enganar a Censura mais uma vez em 1974. Inventou o pseudônimo Julinho da Adelaide para lançar as músicas “Jorge Maravilha”, “Milagre brasileiro” e “Acorda, amor”. Ele mesmo fez saber, pelos jornais, que o personagem era uma criação sua. A partir de então, os autores passaram a ter de informar RG e CPF ao mandar suas obras.
— “Apesar de você” foi um drible clássico — define Pinheiro. — A letra falava de um período de ditadura, de tortura, sem dizer isso. Já o Julinho da Adelaide foi um drible de molecagem, um trote.
Perdas e danos
Entre as duas vitórias que conseguiu, Chico teve derrotas dolorosas. Em 1973, ele e Gilberto Gil compuseram “Cálice” para o festival Phono 73, da gravadora Philips. Foram proibidos de cantá-la, Chico tentou dessa vez o drible de falar só a palavra-título (também entendida como “cale-se”), mas os microfones foram desligados pela gravadora, que seguiu a ordem da Censura, irritando-o profundamente.
No mesmo ano, “Calabar”, peça sua e de Ruy Guerra, foi proibida às vésperas da estreia, quando muito dinheiro já tinha sido gasto.
— E os jornais ainda foram proibidos de noticiar a proibição — acrescenta Pinheiro. — Tudo foi feito com sordidez.
- Chico Buarque e o futebol: paixão antiga que passa pelo Fluminense e pelo Polytheama
A estratégia usada no caso mostrava que a ditadura podia ser perversamente inteligente. O livro traz pareceres constrangedores de censores, mas nem todos eram imbecis, acredita o jornalista.
— Havia de tudo. Gente preparada, até sofisticada, os sádicos, os paranoicos. Eles gostavam de desempenhar o papel de censores, se deslumbravam — afirma.
Ao explicar a letra de “Jorge Maravilha”, do refrão “Você não gosta de mim, mas sua filha gosta”, Chico disse que era comum censores pedirem autógrafos dele.
— Muitos gostavam do Chico, mas eram educados para não gostar — diz Pinheiro.
- Chico Buarque, 80 anos: o que se sabe sobre 'Bambino a Roma', novo livro do compositor
Em 1978, com a abertura política, foram liberadas “Apesar de você”, “Cálice” e “Tanto mar”. Em 1980, “Calabar” pôde ser encenada. Mas, disse Chico à época, o “prejuízo” já ocorrera.
Aos poucos, o compositor pôde se despir do papel de inimigo número 1 e priorizar a criação. A Censura ainda apareceu em 1983, quando vetou a palavra “pentelho” na “Ciranda da bailarina”. Mas aí dava até para rir.
— No fim, a censura deixou de ser política para ser comportamental, moralista — aponta Pinheiro.
‘O que não tem censura nem nunca terá’
Autor: Márcio Pinheiro. Editora: L&PM. Páginas: 224 . Preço: R$ 54,90.